No Oscar 2018, A Forma da Água foi o filme com mais indicações, mas, apesar disso, algumas das categorias estão longe de serem unanimidades. Mesmo dentro do Cineclube Natal, temos os dois lados da história e foi pensando nisso que nossos cineclubistas resolveram expor seus pontos de vista. Confira: Na água, ninguém pode ouvi-lo gemer.O mexicano Guillermo del Toro é, indiscutivelmente, um dos diretores mais autorais do mercado cinematográfico atual. Para sua sorte, essa necessidade de expôr seus monstros literais e metafóricos, na maior parte dos casos, encontra ressonância com o grande público, excetuando-se tropeços honestos como o terror gótico "Colina Escarlate", de 2015. Suas produções conseguem bilheterias saudáveis e isso impulsiona a carreira do diretor em terrenos mainstream. Esse equilíbrio entre dignidade artística e comercialismo parece ser sempre o foco de del Toro, entendedor de que os recursos financeiros de seu próximo projeto em Hollywood depende, necessariamente, do grau de sucesso da produção anterior, ainda mais se considerarmos que sua predileção pelo universo fantástico não custa barato. Eis que em 2017 o mexicano nos apresenta "A Forma da Água", sem dúvida o filme mais celebrado de sua carreira desde a obra-prima "O Labirinto do Fauno", de 2006, no qual repete a fórmula ideal que mistura referências pessoais com cinema popular de indiscutível qualidade, arrebatando treze indicações ao Oscar, inclusive melhor direção. Não que o trabalho de del Toro precise de validação. Mas é triste constatar que seu cinema fantástico é o último dos gêneros a ser legitimado por seus pares, consistindo no único do trio conhecido em Hollywood como “los tres amigos” que ainda não ganhou o Oscar de direção. Alejandro Iñárritu levou por “Birdman”, em 2015, e “O regresso”, em 2016; e Alfonso Cuarón, por “Gravidade”, em 2014. Mas assim como outras produções do mexicano, é difícil encaixar "A Forma da Água" num gênero específico sem que se faça injustiça com o escopo do longa. Sem dúvida seu código genético está intrinsecamente ligado com os filmes americanos "B" de monstro, em especial "O Monstro da Lagoa Negra", de 1954, a inspiração direta do design da criatura, que também toma elementos físicos do personagem Abe Sapien, da franquia “Hellboy”, encabeçada pelo próprio del Toro – aliás há constante autorreferência em “A Forma da Água”. Entretanto, o realismo fantástico do roteiro guarda também estreita relação com "A Bela e a Fera", de 1946, do francês Jean Cocteau, prestando-lhe homenagem expressa em pelo menos uma cena do longa-metragem. Estrutura-se, assim, como um verdadeiro conto de fadas para adultos. Mas é também um filme de espionagem em tempos de guerra fria. É igualmente um filme político, sobre as lutas das minorias sociais para serem ouvidas. E, sobretudo, "A Forma da Água" é um romance. A história se apresenta de modo simples. Elisa (Sally Hawkins), uma faxineira muda de um laboratório governamental americano, descobre nas instalações um humanóide anfíbio (Doug Jones) capturado do Rio Amazonas pelo sádico Richard Strickland (Michael Shannon), que o sujeita a tortura, sob os protestos do cientista Robert Hoffstetler (Michael Stuhlbarg), um agente russo infiltrado que deseja honestamente estudar a criatura, não necessariamente para servir seu país, reconhecendo sua inteligência. Elisa rapidamente percebe que sua inabilidade física não interfere na construção de uma relação afetiva com o "monstro", muito pelo contrário: ambos não falam e, pela primeira vez na vida, ela estabelece com outro ser uma conexão que prescinde de palavras: o amor. Alimentando o corpo da criatura com ovos cozidos e a alma com música, Elisa se apaixona perdidamente, a ponto de arriscar tudo em busca da consolidação desse estranho romance. Guillermo del Toro explora o amor que nos aparece na “forma” que tem que aparecer. E cabe a nós a escolha de abraçá-la. O sentimento que Elisa nutre pela criatura não almeja normalidade e se vê correspondida. E, sim, eles fazem sexo, numa das cenas mais apoteóticas do longa, literalmente inundando um ambiente com prazer sem limites. A ação empresta grande humanidade tanto a bela, quanto a fera, subvertendo assim tanto os referidos filmes de monstro quanto os contos clássicos, vez que a criatura finalmente consegue a garota - e nem precisa virar um príncipe para isso, ou aprender boas maneiras. Aliás a sexualidade de Elisa é estabelecida logo cedo no filme, na qual a vemos cumprir uma rotina diária que envolve masturbação cronometrada na banheira, circunstância que já estabelece um elo temático com o elemento água que permeia a construção metafórica do filme. É definitivamente a produção mais sensual de del Toro, que usualmente não dá ao sexo protagonismo em suas histórias. É uma faceta refrescante e inesperada do diretor. Completam os personagens do filme a dupla Giles (Richard Jenkins) e Zelda (Octavia Spencer), respectivamente o vizinho homossexual de meia idade e a amiga negra - também faxineira - de Elisa. Os três, em conjunto com o cientista, concatenam um plano mirabolante para libertar o "monstro", resultando numa perseguição vingativa por parte de Strickland. Superficialmente, essa estrutura parece a de uma dúzia de outros filmes (há claros ecos de "ET, o Extraterrestre", de 1982), mas o que faz "A Forma da Água" único é a sua atmosfera: como as coisas parecem, se movem e, especialmente, como se moldam à exuberante trilha sonora de Alexandre Desplat. Assim como a criatura, há muito mais aqui do que se apresenta na superfície. Nesse sentido, a direção de arte de Paul Denham Austerberry é exímia em evocar a beleza dos anos sessenta. Tudo é milimetricamente reproduzido nos cenários de modo a expressar as peculiaridades estéticas dessa década, especialmente aquelas consagradas no cinema e tv. A televisão no apartamento de Giles sempre está sintonizada em algum programa ou filme seminal dessa era, com vislumbres que vão de Shirley Temple a Carmen Miranda. Ao seu turno, o trabalho realizado na fotografia do filme por Dan Laustsen é igualmente soberbo, logrando capturar a qualidade sensual aquática imaginada por del Toro. A câmera sempre parece flutuar em todas as direções, com o uso de uma lente que dá a sensação de estarmos assistindo a um sonho molhado - com o perdão do trocadilho. A iluminação, muitas vezes vinda de uma única fonte, evoca perfeitamente o sentimento de isolamento dos personagens. O uso de cores é interessantíssimo também. Os tons de azul predominam no apartamento de Elisa; as casas dos demais são em tons cálidos, âmbar, alaranjados. O vermelho surge em detalhes, simbolizando o amor e a violência. O verde, a cor predominante no filme, tanto representa a idéia de esperança no futuro quanto de decadência, apodrecimento. O filme está permeado por dicotomias visuais. A paleta sublinha outro tema do longa-metragem: a necessidade de se viver o presente. Há personagens apegados ao passado, como Giles, e ao futuro, como o cientista. Elisa e o homem-peixe são os únicos que vivem o agora. O mais evidente exemplo da excelência do trabalho da equipe técnica de "A Forma da Água" se apresenta na sequência de sonho de Elisa, na qual ela canta e dança com a criatura, numa bela homenagem em preto e branco à parceria Rogers/Astaire, ao som de “You’ll Never Know, Just How Much, I Love You", na interpretação de Alice Faye. A romântica cena de abertura do terceiro ato, em contraste com a tensão que seguirá, além de ser tecnicamente deslumbrante, resume totalmente o conceito de del Toro, deixando evidente que seu trabalho é a costura cuidadosa de elementos não só de filmes específicos, mas verdadeiramente de um período inteiro da grandiosa Hollywood. É seu particular Frankenstein e está vivo. Mas del Toro, apesar de enamorado pela "época de ouro” do entretenimento da sociedade americana, se mostra perfeitamente consciente de sua crueldade com as minorias sociais e não foge dessa crítica. O filme deixa claro quem eram os “vencedores” e “perdedores”. Homens dominam as mulheres. Brancos dominam os negros. E homossexuais sequer podiam ser considerados pessoas. Aqueles com bons empregos e aspirações se cercam de bens de consumo, o resto vive de, bem, restos. Apenas o cinema permite que todos compartilhem os mesmos sonhos, e não por acaso Elisa mora literalmente em cima de um, que exibe “A História de Rute”, de 1960. A tríade do filme, os solitários Elisa, Giles e Zelda falam volumes sobre o comentário social feito por del Toro. Ser mudo, gay ou negro são formas de desqualificação que ainda reverberam atualmente em nossa cultura misógina, homofóbica e racista. O sádico Strickland, na fantasia maniqueísta do diretor, literalmente, representa a opressão do sistema, os privilégios do homem branco heterossexual de classe média, que espera servidão de todos aqueles que são “diferentes”. Nada muito distante dos discursos de certas figuras políticas da atualidade. Guillermo del Toro, não sutilmente, lança a indagação do que pode acontecer quando os explorados procuram equidade social e se insurgem contra o status quo. O que fazer quando o monstro se volta contra seu mestre? O conto engendrado pelo mexicano permite discutir temas políticos de maneira oblíqua, mas potente. O "foda-se" mudo de Elisa a Strickland é o apogeu desse comentário social. A luta de Elisa, Giles e Zelda é contra o sistema estratificado que lhes impõe seus papéis sociais pré-definidos. A possibilidade de felicidade de Elisa, expressa na fuga com a criatura, consiste na esperança de libertação das minorias representadas por esses personagens: não há “nós” sem reconhecermos o “outro”. O amor liberta, não oprime. Evocando sua qualidade de conto de fadas moderno, o roteiro não está preocupado em relativizar a maldade explícita de seu vilão. A força destruidora de Strcickland, de morte, contrasta justamente com o poder de vida da criatura que ele tanto odeia, não sendo do interesse do mexicano expôr eventual motivação mais "humana". Atacado em dado momento pela criatura torturada, Strickland tem seu dedo arrancado, sendo reimplantado em dado momento do filme – ironicamente é a própria Elisa quem acha o membro e o devolve. Mas à medida que a trama avança e a falta de humanidade de Strickland vai se revelando de maneira mais intensa, o dedo necrosa gradualmente, até ser arrancado pelo próprio personagem. A alegoria é espetacular, especialmente se considerarmos que era o dedo justamente no qual o personagem usava sua aliança de casamento, indicando a falência da instituição em face do amor proibido de Elisa. Strickland incorpora, assim, o que há de estéril no "modo de vida americano", cuja sordidez reside em casas suburbanas com cercas brancas e famílias aparentemente perfeitas, que escondem, porém, uma profunda insatisfação com seu "sonho", enquanto os inferiores buscam a felicidade na autenticidade de seus desejos, ousadia que deve ser combatida violentamente. A metáfora é evidente: o monstro é mais humano que o homem. Essa abordagem pode parecer simplista, entretanto, funciona bem no roteiro coassinado por del Toro e Vanessa Taylor. O filme é uma fábula e nunca se esquece disso. Um conto moral clássico. Em "Branca de Neve" não perscrutamos as motivações da rainha má (esse é um interesse moderno) e é justamente essa a abordagem do diretor, que desde "O Labirinto do Fauno" demonstra uma visão infantil sobre as maldades do mundo. Rapidamente percebemos que a opção de contar uma história convencional, com uma estrutura de narrativa bem conhecida em Hollywood é também aquilo que joga a favor desta película. Guillermo del Toro fê-lo porque quis contar uma história mil vezes já vista, mas ao mesmo tempo tornando-a única, ao colocar um dos seus monstros particulares a habitá-la. Isso torna o filme extremamente flexível, inclusive. A plateia pode encará-lo apenas como um refinado entretenimento ou, se estiver disposta, mergulhar nos subtemas construídos. O longa é aberto a todos o usufruírem, quer como crítica sociopolítica, quer como a fábula adulta pelo qual tem sido vendido. Claramente del Toro oferece seu amor a quem estiver disposto a recebê-lo. E, claro, precisamos falar de Octavia Spencer, Richard Jenkins e Michael Stuhlbarg. Estão estupendos. Cada um compreende perfeitamente o que é esperado de seus personagens e aproveitam a oportunidade para brilhar, esbanjando carisma. Zelda é o alívio cômico do longa, sempre com alguma tirada que aponta para o absurdo da situação, ao passo que o humor ácido de Giles mascara uma profunda amargura pelo tempo perdido. O personagem do cientista Hoffstetler é o menos desenvolvido, mas nele reside grande parte do compasso moral do filme. Mas é Sally Hawkins quem rouba a cena como a muda Elisa. Ela é o coração palpitante do filme: peculiar, cativante, carismática, melancólica, surpreendentemente introvertida e de uma espantosa fragilidade. Hawkins não representa, ela vive e dança pelas composições de Desplat e entre planos do diretor. É irrepreensível. É tanto ou mais mágica que o próprio monstro do rio por quem ela se apaixona, interpretado pelo mímico Doug Jones, verdadeiro herdeiro de Marcel Marceau, longo colaborador artístico de del Toro. Em muitos aspectos, a performance de ambos evocam o expressionismo alemão, indiscutível semente de onde nasceram todos os monstros do cinema contemporâneo. “A Forma da Água” é um filme marcante, ainda que formulaico. Mas é nessa obediência de padrões pré-definidos que, justamente, se encontra. O longa é de uma fragilidade humana imensa, que cativa e aquece, nos fazendo sonhar que podemos sim, apesar das adversidades, alcançar um final feliz particular, talvez até com nosso próprio monstro. Num mundo ainda cheio de ódio e intolerância, del Toro lapidou um diamante de brilho reluzente, testamento de um cineasta que fascina através da criança que vive dentro de nós. Gianfranco Marchi A Forma da Água (The Shape of Water): uma fábula de amor Uma faxineira muda e uma criatura anfíbia, presa em um laboratório militar de pesquisas, se apaixonam. Está é a fábula de Guillermo del Toro em seu filme “A Forma da Água”, que concorre ao Oscar 2018 como Melhor Filme e Melhor Diretor, entre outras premiações (Melhor Roteiro Original, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Design de Produção, Melhor Fotografia, Melhor Figurino, Melhor Mixagem de Som, Melhor Edição de Som, Melhor Trilha Sonora.
O filme é bom, muito bonito, com muitas metáforas e referências (do uso das cores às questões de inclusão) e pelo qual você se apaixona (e diminui o seu limiar de criticismo), ou não e começa a vê-lo mais criticamente, mesmo tendo gostado do filme. Nesse sentido, têm-se a sensação de já ter visto algo parecido em algum lugar (lembrem-se da inspiração assumida pelo próprio Guillermo do filme O Monstro da Lagoa Negra, de 1954). Ele mesmo declarou que quando criança, ao assistir por diversas vezes a esse filme ele queria que a “mocinha” e o monstro ficassem juntos para sempre. Talvez por remeter para uma ambientação de anos 1960, em plena guerra fria, o vilão deste filme, Richard Strickland (interpretado por Michael Shannon) é praticamente unidimensional, muito pouco profundo. Em relação à criatura (lembrando-se dos famosos monstros dos filmes B) ou ela é bela, ou horrível, dependendo de quem a vê. Provavelmente tenha sido uma escolha do diretor, mas o que vemos, de forma quase imediata, é a construção de um conto de fadas lindíssimo e muito poético. Guillermo é mestre em ver o belo onde os outros enxergam o feio, ou o assustador. Elisa (Sally Hawkins, indicada ao Oscar de Melhor Atriz), a faxineira órfã e muda tenta persuadir (numa posição de alter ego do diretor) os espectadores que o “monstro” não é feio, nem assustador (para ela, não é nem um monstro). É mais do que óbvio que, em pouco tempo, estarão apaixonados. Faz isso também através de conquistas com pequenas ofertas de carinho e amor, como os ovos cozidos tirados de seu próprio lanche diário!). Vê-se a mão do diretor em toda parte. A “apreensão” do filme depende muito da imersão do espectador no(s) ambiente(s) do mesmo, seja ele o escuro e aterrorizante laboratório militar de pesquisas, em que nenhuma luz natural penetra, sejam os velhos apartamentos gêmeos de Elisa e de seu amigo Giles (Richard Jenkins, indicado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante), em cima de um cinema decadente, onde no fim da tarde a luz entra pelos janelões e difunde a luz pelas partículas de poeira que flutuam no ar. Gullermo del Toro é mestre em criar esses mundos fantásticos de texturas mais vivas que no mundo real (lembrem-se do seu outro filme O Labirinto do Fauno, igualmente fantástico). Provavelmente será dele a estatueta do Oscar de Melhor Diretor, mostrando através desta fábula que há, ainda, no ser humano qualidades indestrutíveis, como a imaginação, que pode criar até novas realidades. A alegoria apresentada por del Toro, “vivificando” os monstros dos filmes B da década de 1960 e a sociedade americana dessa mesma época, deve-se ao fato de se poder transportar facilmente para 2017-2018, os desajustados sociais de ontem e de hoje: é a questão da mulher, dos negros, dos “gays”, dos “estrangeiros” de todas as cores e lugares. Todos “monstros” de ontem e de hoje, infelizmente. Mas estes continuam numa fábula fantástica de viver livres, a partir de certo ponto, e felizes para sempre! Corroborando essa proposta, o roteiro não é dos mais fortes, simplificando em demasia algumas partes do filme, exigindo até repetições internas, que não precisariam acontecer se o roteiro fosse mais elaborado. Por isso mesmo acreditamos que o filme é uma fábula fantástica, com um roteiro simples e que serve ao conto moral exposto, mesmo que desbalanceado internamente, e às relações entre personagens desvalidos pessoal e socialmente e os “monstros”. Nelson Marques
0 Comments
Leave a Reply. |
AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
Categorias |