Nelson Marques e Gianfranco Marchi Cineclube Natal e ACCiRN – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte e-mails: [email protected] e [email protected] Pelo 13° ano consecutivo (bate na madeira!), o Cineclube Natal (CCN) organizou, no último mês de maio (dias 16, 17 e 18), a sua já tradicional Mostra do Filme Cult. Dessa vez, o CCN, em parceria com o Nalva Melo Café Salão, promoveu a exibição diária de uma pequena seleção de filmes japoneses do gênero horror, dentro de uma proposta temática que permeou as três últimas edições do evento. Há tempos, o Cineclube Natal, ano a ano, e com diferentes parceiros (dentre os quais: Rodrigo Hammer; Teatro de Cultura Popular Chico Daniel (TCP) – da Fundação José Augusto do Governo do Estado do Rio Grande do Norte, através de sua antiga Diretora, Sônia Santos; e, agora, Nalva Melo, tem procurado ampliar o horizonte cultural dos cinéfilos natalenses com a exibição dos chamados filmes cults – abordados por nossos cineclubistas em livro, como o 80 Cult Movies Essenciais, de Rodrigo Hammer, Nelson Marques e Gianfranco Marchi, lançado em 2010 pela EDUFRN; e matérias, como Os 10 melhores filmes cults para assistir na Netflix, de Sihan Felix para o Canaltech. Essa ação sempre teve o objetivo central de apresentar e desvendar esse fértil campo, mostrando obras cinematográficas de pouca penetração pública, mas, frequentemente, de quase inegável qualidade (e leia-se qualidade de uma forma bem subjetiva e algumas poucas vezes sarcástica) e, quase sempre, relegadas ao esquecimento. Os trabalhos de garimpagem, escolha, legendagem e exibição das dezenas de filmes que são exibidos têm rendido excelentes discussões com nossos espectadores, alguns deles já cativos, no decorrer dos 13 anos do evento que, anteriormente, fora chamado de Semana do Filme Cult. A atividade contínua permitiu que tivéssemos um panorama diversificado de filmes, estilos, histórias e gêneros, selecionados cuidadosamente a partir desse amplo guarda-chuva chamado de filmes cult. No total, durante os 13 anos, cerca de 1.000 espectadores puderam aproveitar, ou estranhar, em nossas diferentes salas de exibição, mais de 80 filmes apresentados, ocasiões nas quais discutimos e divergirmos a respeito dos méritos artísticos das produções. Destacamos, nesta retrospectiva, filmes importantes que povoaram as exibições, alguns provocadores e outros polêmicos, como O Incrível Homem que Encolheu (de Jack Arnold, 1957) e Noite dos Macacos Sanguinários (de René Cardona e René Cardona Jr., 1969), exibidos em 2007. Em 2008, o público pôde conferir uma das primeiras atuações de Anthony Hopkins em Um Passe de Mágica (de Richard Attenborough, 1978), bem como um filme brasileiro de 1969, quase esquecido, Meteorango Kid – Um Herói Intergaláctico, do diretor André Luiz Oliveira, marco da contracultura nacional. Da 3° Semana do Filme Cult, ocorrida em 2009, vale lembrar o filme de Robert First O Abominável Dr. Phibes (1971) e o filme de 2008, vindo da Suécia, Deixe Ela Entrar, de Tomás Alfredson, cuja escolha se deu através de uma brincadeira da curadoria sobre qual filme então recente alcançaria o status de cult. Com o passar do tempo – onze anos depois –parece que a previsão foi certeira. Em 2010, exibimos seis filmes, dos quais merecem destaque a película de Dario Argento Suspiria, realizada na Itália, em 1977, recentemente revisitada por Luca Guadagnino em seu remake homônimo, bem como o clássico B O Monstro da Lagoa Negra, filme de 1954 realizado nos EUA por Jack Arnold. Na 5ª edição, realizada de 16-22 de maio de 2011, tivemos o seminal O Homem de Palha, de Robin Jardim, filmado na Inglaterra em 1973. Como contraponto, mostramos a uma plateia chocada A Centopeia Humana, o novo clássico cult dirigido pelo holandês Tom Six, realizado em 2009. Ao todo foram exibidos seis curtas-metragens, acompanhando os filmes em cada um dos dias. A combinação de longas e curtas se repetiria nas 6ª e 7ª Semanas do Filme Cult, que aconteceram em 2012 e 2013 e que contaram novamente com a exibição de seis filmes em cada uma delas. Em 2012, destacamos duas produções ítalo-francesas: La donna scimmia (A Mulher Macaco), de Marco Ferreri, filme de 1964, e Salò ou Os 120 Dias de Gomorra, lançado por Pier Paolo Pasolini no ano de 1975 e que rendeu uma das sessões mais polêmicas de todo o projeto. Na 8ª Semana, ocorrida em maio de 2014, outros seis filmes foram exibidos, dentre os quais dois exemplares típicos do mundo cult: Glen ou Glenda (de Ed Wood, 1953) e o ultrajante Vase de noces, também conhecido como The Pig Fucking Movie, filme belga, de 1975, do diretor Thierry Zeno. A partir de 2015, começamos a reduzir a organização da Semana do Filme Cult para as Mostras do Filme Cult, com três ou quatro dias de duração. Na 9ª Mostra, ocorrida em maio de 2015, já foi assim. Foram mostrados quatro filmes, dos quais destacamos dois pela sua representatividade de duas linguagens cinematográficas bem distintas: o filme de Michael Winner Os Que Chegam Com a Noite, da Inglaterra, de 1971 (com um trabalho de legendagem exclusiva do Cineclube Natal), e o filme grego Dente Canino, de 2009, do hoje reconhecido e premiado Yorgos Lanthimos. A Semana foi retomada em 2016, no primeiro formato temático, com a exibição de seis longas relacionados ao vampirismo, ocorrida entre os dias 17-22 de maio. Dessa leva, apontamos dois filmes: o de Jean Rollin Le viol du vampire (1968) e o hoje cultuado filme neo zelandês O Que Fazemos nas Sombras, de Jemaine Clement e Taika Waititi – sim, o cara que dirigiu Thor: Ragnarok. Retomamos à exibição mais enxuta nos anos de 2017, 2018 e 2019, respectivamente as 11ª, 12ª e 13ª Mostras do Filme Cult, sempre no mês de maio de cada ano, coincidindo com o aniversário do Cineclube Natal. Durante a Mostra de 2017, fizemos uma apresentação especial com quatro filmes do diretor espanhol Amando de Ossorio, a sua prestigiada Quadrilogia dos Mortos Cegos, dentro do tema zumbis, formada pelos longas A Noite do Terror Cego (1972), O Retorno dos Mortos Vivos (1973), O Galeão Fantasma (1974) e A Noite das Gaivotas (1975). Em 2018, na 12ª Mostra, a homenagem seria para o tipicamente italiano giallo (amarelo, na língua de Dante). Três filmes foram programados, mas apenas um foi exibido no Teatro de Cultura Popular Chico Daniel, em razão do desabamento de parte do teto na entrada do local. O giallo apresentado no primeiro dia foi O Ventre Negro da Tarântula (de Paolo Chacara, 1971), produção ítalo-francesa. Os outros dois exemplares da mostra, A Casa das Janelas Sorridentes (de Pupi Avati, 1976) e A Cauda do Escorpião, filme de 1971 do expoente do gênero Sergio Martino, encontraram abrigo alternativo na charmosa tela de Nalva Melo Café Salão. Na edição da Mostra de 2019 (a 13ª enfim) oficializamos a parceria de exibição com o Nalva Melo Salão Café e o cinema cult homenageado foi o japonês. Foram escolhidos três filmes: dois dos anos 1990 (um deles quase isso, na verdade), do diretor Shinya Tsukamoto, e outro da década seguinte, do prestigiado Takashi Miike. As produções foram: Tetsuo, O Homem de Ferro (1989), Hiruko, o Duende (1991) – ambos do Tsukamoto – e Ichi, o Assassino, de Miike (2001). É curioso, para dizer o mínimo, que boa parte desses filmes não tenham tido qualquer exibição comercial no Brasil, ou mesmo disponibilização em home video. Por outro lado, alguns deles tiveram um sucesso relativo, não no circuito comercial de cinemas, mas na TV, exibidos em programas vespertinos como o Sessão da Tarde e o Cine Trash, mesmo que com cortes; ou nos noturnos Sessão de Gala e Corujão (este quase matutino).
Como sempre, explicações das mais diversas para esse descaso existem, mas não muito fáceis de aceitar no geral. Duas delas, no entanto, apontam para a própria dificuldade de acesso a esses filmes (pelo menos em determinadas épocas), tais como a intolerância da censura como instituição político-social, além de uma rejeição social e cultural mais generalizada. Estas, aliadas à misantropia dos exibidores mal informados, completa o quadro de pobreza e falta de acesso à maior parte dessas produções “malditas”. É com satisfação e orgulho, portanto, que o Cineclube Natal tem proporcionado a um pequeno público (gostaríamos que fosse muito maior) a chance de ver e rever algumas obras de importância desse universo de filmes tão amplo e fascinante. Isso exige até mesmo trabalhos de legendagem em português do Brasil, como referido, por serem filmes de difícil acesso, trabalho do qual o CCN tem muito orgulho. A satisfação é ainda maior ao fazermos um balanço dos gêneros e histórias apresentadas dentro do universo cult. Foram filmes de cunho erótico, experimental, underground e/ou marginal brasileiro, suspense, psicológicos, ficção científica, horror e até os abertamente trash. Foram películas de diretores conhecidos e obscuros do grande público, como Jack Arnold, David Cronenberg, George Romero, José Mojica Marins (o nosso Zé do Caixão), Ed Wood, Thierry Zeno, Michael Winner, Yorgos Lanthimos, Jean Rollin, Jemaine Clement, Taika Waititi, Joseph Prieto, Richard Attenborough, Irving Pischel, Ernnest B. Schoedsack, Walerian Borowczyk, Pier Paolo Pasolini, Pier Giuseppe Murgia, René Cardona, René Cardona Jr., Robert Fuest, Alejandro Jodorowsky, Michael Powell, Roman Polanski, André Luiz de Oliveira, Rogério Sganzerla, Tomás Alfredson, Dario Argento, Robin Hardy, Tom Six, Marco Ferreri, Edgar G. Hulmer, Rodrigo Aragão, Amando de Ossorio, Paolo Chacara, Shinya Tsukamoto, Takashi Miike... Em termos de distribuição geográfica os filmes vieram dos EUA, França, Alemanha, Itália, México, Inglaterra, Suécia, Holanda, Bélgica, Grécia, Nova Zelândia, Espanha, Japão e também do Brasil, o que mostra a preocupação de nossa curadoria em traçar um panorama abrangente das mostras. Assim, diante desse breve histórico de nossas atividades, resta a convicção que cada uma das diferentes sessões foi, claramente, um tributo ao cinema mal, pouco, ou francamente desconhecido dos chamados filmes cult, produções que, com certeza são abertas, ou reservadamente, cultuadas por diferentes pessoas e grupos de gostos, digamos, peculiares. Se tudo correr bem, estaremos por aqui por vários anos mais, com outras edições da Mostra, Semana, ou até mesmo, esperamos algum dia, do Mês do Filme Cult.
0 Comments
Gianfranco Marchi Cineclube Natal e ACCiRN – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte e-mail: [email protected] Agnès Varda, uma das pioneiras da Nouvelle Vague, morreu em 29 de março do corrente ano, em decorrência de complicações de um câncer de mama, aos 90 anos de idade, na cidade de Paris. A morte da cineasta aflorou muitos sentimentos no coração de cinéfilos ao redor do mundo, rendendo-lhe inúmeras e merecidas homenagens. Como cineclubista, fez-me lembrar dos vários filmes que exibimos da dama belga ao longo de tantos anos de atividade do Cineclube Natal. Em especial, de um acontecimento que virou uma anedota interna, ocorrido quando da exibição do seminal Clèo das 5 às 7, no Nalva Melo Café Salão, na Ribeira. Foi um evento agridoce, vez que convocamos a imprensa local para discutir o futuro do cineclubismo na Cidade do Sol, considerando as cada vez mais minguadas sessões – realidade que se agravaria no decorrer dos anos, diga-se de passagem. Entretanto, estávamos alegres porque seria a primeira vez que o cinema de Varda apareceria na nossa telinha e ansiosos pela reação da platéia ao seu cinema existencialista. Não obstante essa animação, durante o referido evento com a imprensa, escutamos de uma badalada personalidade local, senhora com estreitas ligações com o audiovisual, inclusive, bradar arrogantemente que não tínhamos público porque ninguém queria ver “Cléo de não sei do quê às não sei das quantas” e que deveríamos exibir filmes como Batman Begins – produção que então gozava o ápice de sua popularidade. O comentário foi chocante. Não só pelo fato de que aquela pessoa desconhecia a proposta do cineclubismo, mas principalmente porque na suposta qualidade de entendedora da sétima arte, obviamente ela não tinha a menor ideia de quem se tratava Agnès Varda e a importância de sua obra, principalmente para a visibilidade da mulher por trás das câmeras. E esse desconhecimento é trágico. Realmente, Varda passou anos à sombra de seus contemporâneos da Nouvelle Vague, diretores do cacife de Jean-Luc Godard e François Truffaut, ou mesmo de seu próprio marido, o maravilhoso Jacques Demy. Mas os deuses do cinema foram bons com a belga. Sua longevidade e incessante curiosidade com as questões existenciais do ser humano lhe consolidaram como um ícone da sétima arte, cujos últimos trabalhos, como o magnífico Visages, Villages, de 2018, ainda se mostram profundamente relevantes e belos. Varda se destacou como cineasta nas décadas de cinquenta e sessenta com filmes como La Pointe Courte (1955) e o prefalado Cléo das 5 às 7 (1962), que a estabeleceram como uma diretora autoral na crescente nova onda. Muito embora o gênero hoje seja mais lembrado por seus diretores masculinos, as contribuições de Varda ao movimento na verdade predatam muitas das obras de seus companheiros. Nascida na Bélgica em 1928, Agnès Varda cresceria para estudar história da arte e fotografia na França. Seus tocantes filmes, que às vezes misturam documentário e ficção, ou passeiam entre ambos, comumente focam na vida de mulheres complexas, abordando questões intrinsecamente feministas, ou temáticas de cunho social. Em 1951, Varda foi indicada fotógrafa oficial do Théâtre National Populaire, permanecendo no cargo por uma década. Em 1954, muito antes de François Truffaut se tornar o medalhão da Nouvelle Vague francesa, o primeiro filme de Varda, o mencionado La Pointe Courte, já abordava a história de um casal em crise na cidade portuária de Sète, antecipando o tema referente as conflito homem/mulher, tão caro ao francês. Varda já havia realizado inúmeros documentários de curta metragem, mas a falta de fundos a impediu de dirigir seu próximo filme, Cléo das 5 às 7, até o ano 1961. Ela se tornou famosa por esta produção, um filme em tempo real sobre uma jovem mulher que espera o diagnóstico definitivo de um câncer, no qual Varda faz um brilhante estudo entre o tempo objetivo e o subjetivo. Apoiada pelo empresário Georges de Beauregard, que já havia financiado Acossado, de Jean-Luc Godard, o filme é uma profunda análise da personagem Cléo, que diante da perspectiva de sua finitude, evolui de uma estrela pop superficial para um autêntico ser humano, capaz de entender não só a sua dor, como também a dos outros. O filme foi um enorme sucesso de crítica e público, construindo as bases para seu próximo longa, As Duas Faces da Felicidade, que ganharia o Leão de Ouro no Festival de Berlim de 1965. Em 1968 Agnès Varda presenteia o mundo com o média-metragem Black Panthers, documentário por ela produzido quando morava nos Estados Unidos, deixando clara sua aliança com os movimentos sociais, posicionamento que reafirmaria no longa de ficção Lions Love, do ano seguinte. Em 1977, Varda lança Uma Canta, a Outra Não, filme no qual aprofunda sua visão do feminismo, tema que repareceria no elogiadíssimo longa Sem Teto Nem Lei, de 1985, com a atriz Sandrine Bonnaire, no qual é contada a história de morte e vida – nessa ordem – da andarilha Mona, mulher que vive em seus termos e se recusa a dobrar-se perante a sociedade patriarcal, através da perspectiva das diversas pessoas que cruzaram seu caminho. Uma reflexão sobre a solidão feminina. Em 2017 Varda foi premiada com um Oscar honorário pela Academia e continuou fazendo filmes até anunciar sua aposentadoria no início de 2019. Sabia que não lhe restava muito tempo, mas ainda nos deu um último presente, o documentário Varda par Agnés (2019), no qual expõe seus processos de criação e revela sua experiência com o fazer cinematográfico, tecendo comentários pessoais sobre as suas produções. No aspecto pessoal de sua vida, Varda foi casada com o diretor francês Jacques Demy, morto em 1990 vitimado pela AIDS, a quem ela homenageou no tocante Jacquot de Nantes (1991). Deixou dois filhos com Jacques, Mathieu Demy e Rosalie Varda, ambos envolvidos com o cenário cinematográfico francês.
Com Agnès Varda morre uma lenda. Aliás, não se pode falar em morte, realmente, quando se menciona uma artista de seu calibre. Seu coração para sempre pulsará em suas obras, pedaços de si mesma deixados como presentes para o mundo. Varda abordou seu cinema, seja na forma de documentário ou ficção, com um olho peculiar e a indiscutível habilidade de arrancar doçura dos assuntos mais duros. Com seu eterno corte em formato de cuia, Varda era brincalhona, curiosa, doce, honesta e um milhão de outros adjetivos que ainda não seriam capazes de capturar seu incomparável espírito. Sua morte, aos 90 anos, nos faz lembrar de que ela é uma figura insubstituível. Se você assistiu apenas a um de seus filmes, saberá que ela era uma verdadeira joia. Varda amou o cinema e foi amada em retorno. Adeus, querida dama. A rainha está morta. Vida longa à rainha! Gianfranco Marchi Cineclube Natal e ACCiRN – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte e-mail: [email protected] O título de Green Book: O Guia se refere a uma publicação americana dos anos 1960, direcionada para pessoas negras, que listava estabelecimentos – hotéis, restaurantes, bares – amigáveis às pessoas de cor que porventura estivessem viajando pelo sul dos Estados Unidos. Este misto de drama, comédia e road movie dirigido por Peter Farrelly, aquele mesmo que fez Cameron Diaz usar fluído corporal como fixador capilar em Quem vai ficar com Mary, trilha uma estrada na tela como se usasse seu próprio Green Book interno, nunca se desviando do caminho amigável e sentimental que outros filmes como Conduzindo Miss Daisy ajudaram a pavimentar em Hollywood. Os buracos da árdua estrada do racismo na América são preenchidos por Farrely com puro açúcar, de modo que as plateias se sintam confortáveis em apenas aproveitar o tema de superação racial através do poder da amizade. O filme conta a história "real" do durão Tony Vallelonga, interpretado por Viggo Mortensen, um ítalo-americano com tendências racistas, que aceita o trabalho de ser o chofer do músico Don Shirley, vivido por Mahershala Ali, um culto pianista de jazz clássico. Durante a viagem da turnê do músico pelo sul, o motorista branco assume outros papéis na vida do patrão, servindo como segurança, confidente e, por fim, amigo. O que incomoda em Green Book: O Guia é sua visão esquematizada do racismo americano dos anos 1960. Ao dividir didaticamente a América entre Norte e Sul, aprendemos superficialmente que há dois tipos de racistas: aquele inofensivo, como o nortista Tony, que, a despeito de jogar fora copos nos quais pessoas de cor bebem, na verdade é "gente boa", e o sulista "mau", que efetivamente mata negros. Essa divisão no filme não deixa nenhum espaço para meio termo e, consequentemente, reflexão por parte do espectador mais incauto, que vai sair do cinema feliz em constatar "como as coisas avançaram" desde aqueles tempos. Definitivamente o filme foca no branco salvador enquanto o complexo Don é mostrado como uma figura quase reclusa, um homem de educação clássica dissociado até mesmo da cultura popular dos seus “iguais”, incapaz de apreciar frango frito e Aretha Franklin, lições que Tony, do alto de seu cavalo branco, não tarda em ensinar. E no fim ainda dá um apoio familiar para o negro solitário, que vai passar o Natal com a família do branco. E o que o homem branco aprende mesmo? A ter respeito pelo negro. É francamente desconcertante assistir a um filme em 2019 com esse desfile de estereótipos ultrapassados. Há uma construção antipática do roteiro quanto à personagem de Don, inclusive, habilmente contornada pela atuação carismática de Ali. Um homem negro requintado que mora no topo do Carnegie Hall e entrevista o simplório e simpático Tony usando um robe dourado, sentado no que parece ser um trono. A imagem contrasta com as ameaças sofridas por Don no sul, de modo que o "rei negro" aprende que na vida real ele deve confiar nos serviços – e força bruta – do amigo branco. Essa imagética é complexa, porque faz com que as plateias se sintam mais conectadas com o bonachão Tony, justamente o cara que não precisa de empatia social. Mas todas essas questões são colocadas de lado no longa, que foca na relação dos dois personagens que ensinarão um ao outro uma importante lição sobre tolerância. E esse é justamente o plano. A visão de Green Book: O Guia sobre racismo é tão condescendente e diagramada que o filme parece uma fórmula de bolo. O enredo é simplista, com perfeita simetria das caracterizações raciais de maneira a refletir os dois lados da América pré e pós-Trump. De um lado, Tony deve parar de usar termos ofensivos para se referir às pessoas negras; de outro, Don precisa parar de criticar a dicção de Tony. Esse espelho moral incomoda porque a situação de Don não era aquela vivida pelo negro médio americano. Na verdade, sequer é a situação da maioria dos negros de hoje. É uma falácia.
Assim, o filme segue seu próprio Green Book e não explora nenhuma parada perigosa, especialmente no que tange ao enigmático Don Shirley de Mahershala Ali. Há inclusive um episódio de homossexualidade que o filme dramatiza tangencialmente, para nunca mais ser abordado. Um diretor mais habilidoso poderia construir melhor a personalidade de Don para além do negro alienado, mostrando que sua afetação e distanciamento poderiam ser um elaborado mecanismo de defesa – e sobrevivência. Mas, de novo, Green Book: O Guia está muito mais interessado no objetivo de agradar multidões do que em profundidades psicológicas de seus personagens. Resumindo, Green Book: O Guia serve como entretenimento leve de massa. Mas, se você estiver procurando um filme que leve a sério a problemática racial ainda tão atual, o excelente Infiltrado na Klan, de Spike Lee, está aí para ser visto. A indicação dos dois ao Oscar de Melhor Filme aponta para uma Academia confusa quanto à questão racial, que precisa do suporte escapista de filmes como Green Book: O Guia para validação do público. Um espelho de como a própria América encara o racismo: pela ótica distante do branco, que observa, e na pele do negro, que sente. Gianfranco Marchi Cineclube Natal e ACCiRN – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte e-mail: [email protected] O média metragem “Merda!” (2018), do diretor potiguar Paulo Henrique Borges, pode causar ao espectador mais incauto a mesma estranheza que leva aos ouvidos leigos desconhecedores do jargão teatral que lhe batiza: certamente é uma obra intrinsecamente dicotômica. O diretor abre seu filme com trecho de entrevista tipicamente documental, artifício que descobriremos irá pontuar as sequências ficcionais, nos trazendo ponderações de personalidades sobre a natureza do teatro. É interessante notar que tal qual a palavra “merda”, que possui no meio teatral significado distinto daquele comumente utilizado, o média metragem possui, também, uma natureza ambígua em sua forma, mesclando as linguagens de documentário e ficção, de modo a construir sua narrativa. De modo geral é bem-sucedido, considerando que as colocações poéticas sobre a vida no teatro contrastam com a estória ficcional contada. O cotidiano dos atores, assistente de direção e diretor de teatro retratados parece muito menos glamoroso do que os monólogos abstratos e às vezes transcendentais de seus entrevistados. O teatro, como arte, é divinamente humano. E seu processo de criação, como mostrado no filme, nem sempre é movido pelos sentimentos mais nobres. De um lado temos o assistente de direção egocêntrico, numa necessariamente caricata interpretação do conhecido ator Henrique Fontes. De outro, o diretor decadente que se acha mais relevante do que realmente é. E, ao fundo, uma trupe de atores aspirantes que tentam, na arte teatral, encontrar seus rumos na vida. Ninguém é perfeito, entretanto, nada os impede de montar algo que abstratamente o é – a peça é ovacionada de pé pelo público, muito embora não saibamos ao certo do que se trata. Aqui o que importa ao filme é o processo artístico do teatro, não seu produto final. Essa humanização dos bastidores do teatro já rendeu grande cinema: filmes como “Noite de Estreia” e o mais recente “Birdman” estão mais interessados nos dramas pessoais por trás das cortinas do que naquilo que se faz realmente no palco. Outras produções, como “Chorus Line” e “O Show Deve Continuar”, têm prazer em escancarar as picuinhas internas que muitas vezes movem aqueles que vivem dos palcos. Decerto é um material rico e é nessa dicotomia que o média de Paulo Henrique Borges encontra sua voz. A fotografia em preto e branco dá ao filme esse clima de bastidores. A câmera se move como um paparazzi, nos dando relances das imperfeições da trupe. Bons atores nem sempre são boas pessoas. E atores medíocres podem ser pessoas excepcionais, geralmente engolidos pelos egos das estrelas. Nesse aspecto encontramos ecos do clássico “A Malvada”, que lança um olhar crítico sobre as grandes divas do teatro – e até mesmo cidades pequenas como Natal as têm, definitivamente. As atuações são competentes e há o claro destaque para o assistente de direção interpretado por Henrique Fontes, talvez o personagem melhor idealizado no filme. Seus maneirismos e excentricidade refletem bem os excessos do meio, entretanto, há algo de terno em sua figura. Não obstante use os atores para fins egoísticos e os trate com desprezo, fica difícil antipatizar com ele, especialmente quando fica tão exultante com o relativo “êxito” da peça porcamente ensaiada. O mesmo não se pode dizer da figura do diretor, vivido por Pedro Queiroga, que se apresenta apenas como oportunista e decadente, havendo falha no média em estipular melhor suas motivações - afora as financeiras.
Os demais atores são adoravelmente amadores. Alguns melhores que outros – da mesma forma que na própria estória contada – mas isso não importa. Na verdade, eles devem ser analisados sob uma ótica única, que compõe a trindade ator/assistente de direção/diretor estipulada por Paulo Henrique Borges. No geral, as interações entre os atores e atrizes são corretas e vendem bem o peixe do filme. Essa unicidade dos atores, que formam praticamente um único personagem, pode ser conferida no momento musical de “Merda!”, quando o elenco se reúne numa sequência colorida, muito bem coreografada, que evoca claramente as rotinas do grande Bob Fosse. É um toque delicioso do diretor, que brinca de novo com os contrastes temáticos de sua obra. Mas tudo é perfeito? Não. O tamanho do média incomoda. Funcionaria bem melhor se tivesse no máximo trinta minutos. Há uma reverência muito grande às considerações abstratas dos entrevistados, que parecem se dirigir a uma turma de teatro, não ao grande público. Isso gera um distanciamento dos espectadores em relação a estória que Paulo Henrique Borges se propôs a contar. As intervenções professorais deveriam ser apenas um tempero, melhor editadas, não tomar tempo relevante para construção de personagens – como do referido diretor. Há também erros técnicos pontuais mas que prejudicam a imersão na parte ficcional do média: a sombra do microfone em determinada cena é dolorosamente óbvia e, num filme que se apoia na fotografia preto-e-branco, não há espaço para vultos acidentais. O som poderia ser melhor, mas esta é uma questão técnica que ainda permeia a maior parte das produções potiguares, certamente atribuível ao baixo orçamento e dificuldade de utilização da aparelhagem adequada. A despeito dessas questões, “Merda!” é um passo muito positivo na carreira de Paulo Henrique Borges e na própria cena cinematográfica local. Apesar de manter a opinião de que o filme fluiria melhor como curta, há de se aplaudir o diretor em tentar trilhar o caminho mais difícil na realização de um média metragem, formato ainda raro em terras potiguares. Nesse sentido, “Merda!” ao realizador e à sua equipe. No Oscar 2018, A Forma da Água foi o filme com mais indicações, mas, apesar disso, algumas das categorias estão longe de serem unanimidades. Mesmo dentro do Cineclube Natal, temos os dois lados da história e foi pensando nisso que nossos cineclubistas resolveram expor seus pontos de vista. Confira: Na água, ninguém pode ouvi-lo gemer.O mexicano Guillermo del Toro é, indiscutivelmente, um dos diretores mais autorais do mercado cinematográfico atual. Para sua sorte, essa necessidade de expôr seus monstros literais e metafóricos, na maior parte dos casos, encontra ressonância com o grande público, excetuando-se tropeços honestos como o terror gótico "Colina Escarlate", de 2015. Suas produções conseguem bilheterias saudáveis e isso impulsiona a carreira do diretor em terrenos mainstream. Esse equilíbrio entre dignidade artística e comercialismo parece ser sempre o foco de del Toro, entendedor de que os recursos financeiros de seu próximo projeto em Hollywood depende, necessariamente, do grau de sucesso da produção anterior, ainda mais se considerarmos que sua predileção pelo universo fantástico não custa barato. Eis que em 2017 o mexicano nos apresenta "A Forma da Água", sem dúvida o filme mais celebrado de sua carreira desde a obra-prima "O Labirinto do Fauno", de 2006, no qual repete a fórmula ideal que mistura referências pessoais com cinema popular de indiscutível qualidade, arrebatando treze indicações ao Oscar, inclusive melhor direção. Não que o trabalho de del Toro precise de validação. Mas é triste constatar que seu cinema fantástico é o último dos gêneros a ser legitimado por seus pares, consistindo no único do trio conhecido em Hollywood como “los tres amigos” que ainda não ganhou o Oscar de direção. Alejandro Iñárritu levou por “Birdman”, em 2015, e “O regresso”, em 2016; e Alfonso Cuarón, por “Gravidade”, em 2014. Mas assim como outras produções do mexicano, é difícil encaixar "A Forma da Água" num gênero específico sem que se faça injustiça com o escopo do longa. Sem dúvida seu código genético está intrinsecamente ligado com os filmes americanos "B" de monstro, em especial "O Monstro da Lagoa Negra", de 1954, a inspiração direta do design da criatura, que também toma elementos físicos do personagem Abe Sapien, da franquia “Hellboy”, encabeçada pelo próprio del Toro – aliás há constante autorreferência em “A Forma da Água”. Entretanto, o realismo fantástico do roteiro guarda também estreita relação com "A Bela e a Fera", de 1946, do francês Jean Cocteau, prestando-lhe homenagem expressa em pelo menos uma cena do longa-metragem. Estrutura-se, assim, como um verdadeiro conto de fadas para adultos. Mas é também um filme de espionagem em tempos de guerra fria. É igualmente um filme político, sobre as lutas das minorias sociais para serem ouvidas. E, sobretudo, "A Forma da Água" é um romance. A história se apresenta de modo simples. Elisa (Sally Hawkins), uma faxineira muda de um laboratório governamental americano, descobre nas instalações um humanóide anfíbio (Doug Jones) capturado do Rio Amazonas pelo sádico Richard Strickland (Michael Shannon), que o sujeita a tortura, sob os protestos do cientista Robert Hoffstetler (Michael Stuhlbarg), um agente russo infiltrado que deseja honestamente estudar a criatura, não necessariamente para servir seu país, reconhecendo sua inteligência. Elisa rapidamente percebe que sua inabilidade física não interfere na construção de uma relação afetiva com o "monstro", muito pelo contrário: ambos não falam e, pela primeira vez na vida, ela estabelece com outro ser uma conexão que prescinde de palavras: o amor. Alimentando o corpo da criatura com ovos cozidos e a alma com música, Elisa se apaixona perdidamente, a ponto de arriscar tudo em busca da consolidação desse estranho romance. Guillermo del Toro explora o amor que nos aparece na “forma” que tem que aparecer. E cabe a nós a escolha de abraçá-la. O sentimento que Elisa nutre pela criatura não almeja normalidade e se vê correspondida. E, sim, eles fazem sexo, numa das cenas mais apoteóticas do longa, literalmente inundando um ambiente com prazer sem limites. A ação empresta grande humanidade tanto a bela, quanto a fera, subvertendo assim tanto os referidos filmes de monstro quanto os contos clássicos, vez que a criatura finalmente consegue a garota - e nem precisa virar um príncipe para isso, ou aprender boas maneiras. Aliás a sexualidade de Elisa é estabelecida logo cedo no filme, na qual a vemos cumprir uma rotina diária que envolve masturbação cronometrada na banheira, circunstância que já estabelece um elo temático com o elemento água que permeia a construção metafórica do filme. É definitivamente a produção mais sensual de del Toro, que usualmente não dá ao sexo protagonismo em suas histórias. É uma faceta refrescante e inesperada do diretor. Completam os personagens do filme a dupla Giles (Richard Jenkins) e Zelda (Octavia Spencer), respectivamente o vizinho homossexual de meia idade e a amiga negra - também faxineira - de Elisa. Os três, em conjunto com o cientista, concatenam um plano mirabolante para libertar o "monstro", resultando numa perseguição vingativa por parte de Strickland. Superficialmente, essa estrutura parece a de uma dúzia de outros filmes (há claros ecos de "ET, o Extraterrestre", de 1982), mas o que faz "A Forma da Água" único é a sua atmosfera: como as coisas parecem, se movem e, especialmente, como se moldam à exuberante trilha sonora de Alexandre Desplat. Assim como a criatura, há muito mais aqui do que se apresenta na superfície. Nesse sentido, a direção de arte de Paul Denham Austerberry é exímia em evocar a beleza dos anos sessenta. Tudo é milimetricamente reproduzido nos cenários de modo a expressar as peculiaridades estéticas dessa década, especialmente aquelas consagradas no cinema e tv. A televisão no apartamento de Giles sempre está sintonizada em algum programa ou filme seminal dessa era, com vislumbres que vão de Shirley Temple a Carmen Miranda. Ao seu turno, o trabalho realizado na fotografia do filme por Dan Laustsen é igualmente soberbo, logrando capturar a qualidade sensual aquática imaginada por del Toro. A câmera sempre parece flutuar em todas as direções, com o uso de uma lente que dá a sensação de estarmos assistindo a um sonho molhado - com o perdão do trocadilho. A iluminação, muitas vezes vinda de uma única fonte, evoca perfeitamente o sentimento de isolamento dos personagens. O uso de cores é interessantíssimo também. Os tons de azul predominam no apartamento de Elisa; as casas dos demais são em tons cálidos, âmbar, alaranjados. O vermelho surge em detalhes, simbolizando o amor e a violência. O verde, a cor predominante no filme, tanto representa a idéia de esperança no futuro quanto de decadência, apodrecimento. O filme está permeado por dicotomias visuais. A paleta sublinha outro tema do longa-metragem: a necessidade de se viver o presente. Há personagens apegados ao passado, como Giles, e ao futuro, como o cientista. Elisa e o homem-peixe são os únicos que vivem o agora. O mais evidente exemplo da excelência do trabalho da equipe técnica de "A Forma da Água" se apresenta na sequência de sonho de Elisa, na qual ela canta e dança com a criatura, numa bela homenagem em preto e branco à parceria Rogers/Astaire, ao som de “You’ll Never Know, Just How Much, I Love You", na interpretação de Alice Faye. A romântica cena de abertura do terceiro ato, em contraste com a tensão que seguirá, além de ser tecnicamente deslumbrante, resume totalmente o conceito de del Toro, deixando evidente que seu trabalho é a costura cuidadosa de elementos não só de filmes específicos, mas verdadeiramente de um período inteiro da grandiosa Hollywood. É seu particular Frankenstein e está vivo. Mas del Toro, apesar de enamorado pela "época de ouro” do entretenimento da sociedade americana, se mostra perfeitamente consciente de sua crueldade com as minorias sociais e não foge dessa crítica. O filme deixa claro quem eram os “vencedores” e “perdedores”. Homens dominam as mulheres. Brancos dominam os negros. E homossexuais sequer podiam ser considerados pessoas. Aqueles com bons empregos e aspirações se cercam de bens de consumo, o resto vive de, bem, restos. Apenas o cinema permite que todos compartilhem os mesmos sonhos, e não por acaso Elisa mora literalmente em cima de um, que exibe “A História de Rute”, de 1960. A tríade do filme, os solitários Elisa, Giles e Zelda falam volumes sobre o comentário social feito por del Toro. Ser mudo, gay ou negro são formas de desqualificação que ainda reverberam atualmente em nossa cultura misógina, homofóbica e racista. O sádico Strickland, na fantasia maniqueísta do diretor, literalmente, representa a opressão do sistema, os privilégios do homem branco heterossexual de classe média, que espera servidão de todos aqueles que são “diferentes”. Nada muito distante dos discursos de certas figuras políticas da atualidade. Guillermo del Toro, não sutilmente, lança a indagação do que pode acontecer quando os explorados procuram equidade social e se insurgem contra o status quo. O que fazer quando o monstro se volta contra seu mestre? O conto engendrado pelo mexicano permite discutir temas políticos de maneira oblíqua, mas potente. O "foda-se" mudo de Elisa a Strickland é o apogeu desse comentário social. A luta de Elisa, Giles e Zelda é contra o sistema estratificado que lhes impõe seus papéis sociais pré-definidos. A possibilidade de felicidade de Elisa, expressa na fuga com a criatura, consiste na esperança de libertação das minorias representadas por esses personagens: não há “nós” sem reconhecermos o “outro”. O amor liberta, não oprime. Evocando sua qualidade de conto de fadas moderno, o roteiro não está preocupado em relativizar a maldade explícita de seu vilão. A força destruidora de Strcickland, de morte, contrasta justamente com o poder de vida da criatura que ele tanto odeia, não sendo do interesse do mexicano expôr eventual motivação mais "humana". Atacado em dado momento pela criatura torturada, Strickland tem seu dedo arrancado, sendo reimplantado em dado momento do filme – ironicamente é a própria Elisa quem acha o membro e o devolve. Mas à medida que a trama avança e a falta de humanidade de Strickland vai se revelando de maneira mais intensa, o dedo necrosa gradualmente, até ser arrancado pelo próprio personagem. A alegoria é espetacular, especialmente se considerarmos que era o dedo justamente no qual o personagem usava sua aliança de casamento, indicando a falência da instituição em face do amor proibido de Elisa. Strickland incorpora, assim, o que há de estéril no "modo de vida americano", cuja sordidez reside em casas suburbanas com cercas brancas e famílias aparentemente perfeitas, que escondem, porém, uma profunda insatisfação com seu "sonho", enquanto os inferiores buscam a felicidade na autenticidade de seus desejos, ousadia que deve ser combatida violentamente. A metáfora é evidente: o monstro é mais humano que o homem. Essa abordagem pode parecer simplista, entretanto, funciona bem no roteiro coassinado por del Toro e Vanessa Taylor. O filme é uma fábula e nunca se esquece disso. Um conto moral clássico. Em "Branca de Neve" não perscrutamos as motivações da rainha má (esse é um interesse moderno) e é justamente essa a abordagem do diretor, que desde "O Labirinto do Fauno" demonstra uma visão infantil sobre as maldades do mundo. Rapidamente percebemos que a opção de contar uma história convencional, com uma estrutura de narrativa bem conhecida em Hollywood é também aquilo que joga a favor desta película. Guillermo del Toro fê-lo porque quis contar uma história mil vezes já vista, mas ao mesmo tempo tornando-a única, ao colocar um dos seus monstros particulares a habitá-la. Isso torna o filme extremamente flexível, inclusive. A plateia pode encará-lo apenas como um refinado entretenimento ou, se estiver disposta, mergulhar nos subtemas construídos. O longa é aberto a todos o usufruírem, quer como crítica sociopolítica, quer como a fábula adulta pelo qual tem sido vendido. Claramente del Toro oferece seu amor a quem estiver disposto a recebê-lo. E, claro, precisamos falar de Octavia Spencer, Richard Jenkins e Michael Stuhlbarg. Estão estupendos. Cada um compreende perfeitamente o que é esperado de seus personagens e aproveitam a oportunidade para brilhar, esbanjando carisma. Zelda é o alívio cômico do longa, sempre com alguma tirada que aponta para o absurdo da situação, ao passo que o humor ácido de Giles mascara uma profunda amargura pelo tempo perdido. O personagem do cientista Hoffstetler é o menos desenvolvido, mas nele reside grande parte do compasso moral do filme. Mas é Sally Hawkins quem rouba a cena como a muda Elisa. Ela é o coração palpitante do filme: peculiar, cativante, carismática, melancólica, surpreendentemente introvertida e de uma espantosa fragilidade. Hawkins não representa, ela vive e dança pelas composições de Desplat e entre planos do diretor. É irrepreensível. É tanto ou mais mágica que o próprio monstro do rio por quem ela se apaixona, interpretado pelo mímico Doug Jones, verdadeiro herdeiro de Marcel Marceau, longo colaborador artístico de del Toro. Em muitos aspectos, a performance de ambos evocam o expressionismo alemão, indiscutível semente de onde nasceram todos os monstros do cinema contemporâneo. “A Forma da Água” é um filme marcante, ainda que formulaico. Mas é nessa obediência de padrões pré-definidos que, justamente, se encontra. O longa é de uma fragilidade humana imensa, que cativa e aquece, nos fazendo sonhar que podemos sim, apesar das adversidades, alcançar um final feliz particular, talvez até com nosso próprio monstro. Num mundo ainda cheio de ódio e intolerância, del Toro lapidou um diamante de brilho reluzente, testamento de um cineasta que fascina através da criança que vive dentro de nós. Gianfranco Marchi A Forma da Água (The Shape of Water): uma fábula de amor Uma faxineira muda e uma criatura anfíbia, presa em um laboratório militar de pesquisas, se apaixonam. Está é a fábula de Guillermo del Toro em seu filme “A Forma da Água”, que concorre ao Oscar 2018 como Melhor Filme e Melhor Diretor, entre outras premiações (Melhor Roteiro Original, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Design de Produção, Melhor Fotografia, Melhor Figurino, Melhor Mixagem de Som, Melhor Edição de Som, Melhor Trilha Sonora.
O filme é bom, muito bonito, com muitas metáforas e referências (do uso das cores às questões de inclusão) e pelo qual você se apaixona (e diminui o seu limiar de criticismo), ou não e começa a vê-lo mais criticamente, mesmo tendo gostado do filme. Nesse sentido, têm-se a sensação de já ter visto algo parecido em algum lugar (lembrem-se da inspiração assumida pelo próprio Guillermo do filme O Monstro da Lagoa Negra, de 1954). Ele mesmo declarou que quando criança, ao assistir por diversas vezes a esse filme ele queria que a “mocinha” e o monstro ficassem juntos para sempre. Talvez por remeter para uma ambientação de anos 1960, em plena guerra fria, o vilão deste filme, Richard Strickland (interpretado por Michael Shannon) é praticamente unidimensional, muito pouco profundo. Em relação à criatura (lembrando-se dos famosos monstros dos filmes B) ou ela é bela, ou horrível, dependendo de quem a vê. Provavelmente tenha sido uma escolha do diretor, mas o que vemos, de forma quase imediata, é a construção de um conto de fadas lindíssimo e muito poético. Guillermo é mestre em ver o belo onde os outros enxergam o feio, ou o assustador. Elisa (Sally Hawkins, indicada ao Oscar de Melhor Atriz), a faxineira órfã e muda tenta persuadir (numa posição de alter ego do diretor) os espectadores que o “monstro” não é feio, nem assustador (para ela, não é nem um monstro). É mais do que óbvio que, em pouco tempo, estarão apaixonados. Faz isso também através de conquistas com pequenas ofertas de carinho e amor, como os ovos cozidos tirados de seu próprio lanche diário!). Vê-se a mão do diretor em toda parte. A “apreensão” do filme depende muito da imersão do espectador no(s) ambiente(s) do mesmo, seja ele o escuro e aterrorizante laboratório militar de pesquisas, em que nenhuma luz natural penetra, sejam os velhos apartamentos gêmeos de Elisa e de seu amigo Giles (Richard Jenkins, indicado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante), em cima de um cinema decadente, onde no fim da tarde a luz entra pelos janelões e difunde a luz pelas partículas de poeira que flutuam no ar. Gullermo del Toro é mestre em criar esses mundos fantásticos de texturas mais vivas que no mundo real (lembrem-se do seu outro filme O Labirinto do Fauno, igualmente fantástico). Provavelmente será dele a estatueta do Oscar de Melhor Diretor, mostrando através desta fábula que há, ainda, no ser humano qualidades indestrutíveis, como a imaginação, que pode criar até novas realidades. A alegoria apresentada por del Toro, “vivificando” os monstros dos filmes B da década de 1960 e a sociedade americana dessa mesma época, deve-se ao fato de se poder transportar facilmente para 2017-2018, os desajustados sociais de ontem e de hoje: é a questão da mulher, dos negros, dos “gays”, dos “estrangeiros” de todas as cores e lugares. Todos “monstros” de ontem e de hoje, infelizmente. Mas estes continuam numa fábula fantástica de viver livres, a partir de certo ponto, e felizes para sempre! Corroborando essa proposta, o roteiro não é dos mais fortes, simplificando em demasia algumas partes do filme, exigindo até repetições internas, que não precisariam acontecer se o roteiro fosse mais elaborado. Por isso mesmo acreditamos que o filme é uma fábula fantástica, com um roteiro simples e que serve ao conto moral exposto, mesmo que desbalanceado internamente, e às relações entre personagens desvalidos pessoal e socialmente e os “monstros”. Nelson Marques |
AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
Categorias |