Gianfranco Marchi Cineclube Natal e ACCiRN – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte e-mail: [email protected] O título de Green Book: O Guia se refere a uma publicação americana dos anos 1960, direcionada para pessoas negras, que listava estabelecimentos – hotéis, restaurantes, bares – amigáveis às pessoas de cor que porventura estivessem viajando pelo sul dos Estados Unidos. Este misto de drama, comédia e road movie dirigido por Peter Farrelly, aquele mesmo que fez Cameron Diaz usar fluído corporal como fixador capilar em Quem vai ficar com Mary, trilha uma estrada na tela como se usasse seu próprio Green Book interno, nunca se desviando do caminho amigável e sentimental que outros filmes como Conduzindo Miss Daisy ajudaram a pavimentar em Hollywood. Os buracos da árdua estrada do racismo na América são preenchidos por Farrely com puro açúcar, de modo que as plateias se sintam confortáveis em apenas aproveitar o tema de superação racial através do poder da amizade. O filme conta a história "real" do durão Tony Vallelonga, interpretado por Viggo Mortensen, um ítalo-americano com tendências racistas, que aceita o trabalho de ser o chofer do músico Don Shirley, vivido por Mahershala Ali, um culto pianista de jazz clássico. Durante a viagem da turnê do músico pelo sul, o motorista branco assume outros papéis na vida do patrão, servindo como segurança, confidente e, por fim, amigo. O que incomoda em Green Book: O Guia é sua visão esquematizada do racismo americano dos anos 1960. Ao dividir didaticamente a América entre Norte e Sul, aprendemos superficialmente que há dois tipos de racistas: aquele inofensivo, como o nortista Tony, que, a despeito de jogar fora copos nos quais pessoas de cor bebem, na verdade é "gente boa", e o sulista "mau", que efetivamente mata negros. Essa divisão no filme não deixa nenhum espaço para meio termo e, consequentemente, reflexão por parte do espectador mais incauto, que vai sair do cinema feliz em constatar "como as coisas avançaram" desde aqueles tempos. Definitivamente o filme foca no branco salvador enquanto o complexo Don é mostrado como uma figura quase reclusa, um homem de educação clássica dissociado até mesmo da cultura popular dos seus “iguais”, incapaz de apreciar frango frito e Aretha Franklin, lições que Tony, do alto de seu cavalo branco, não tarda em ensinar. E no fim ainda dá um apoio familiar para o negro solitário, que vai passar o Natal com a família do branco. E o que o homem branco aprende mesmo? A ter respeito pelo negro. É francamente desconcertante assistir a um filme em 2019 com esse desfile de estereótipos ultrapassados. Há uma construção antipática do roteiro quanto à personagem de Don, inclusive, habilmente contornada pela atuação carismática de Ali. Um homem negro requintado que mora no topo do Carnegie Hall e entrevista o simplório e simpático Tony usando um robe dourado, sentado no que parece ser um trono. A imagem contrasta com as ameaças sofridas por Don no sul, de modo que o "rei negro" aprende que na vida real ele deve confiar nos serviços – e força bruta – do amigo branco. Essa imagética é complexa, porque faz com que as plateias se sintam mais conectadas com o bonachão Tony, justamente o cara que não precisa de empatia social. Mas todas essas questões são colocadas de lado no longa, que foca na relação dos dois personagens que ensinarão um ao outro uma importante lição sobre tolerância. E esse é justamente o plano. A visão de Green Book: O Guia sobre racismo é tão condescendente e diagramada que o filme parece uma fórmula de bolo. O enredo é simplista, com perfeita simetria das caracterizações raciais de maneira a refletir os dois lados da América pré e pós-Trump. De um lado, Tony deve parar de usar termos ofensivos para se referir às pessoas negras; de outro, Don precisa parar de criticar a dicção de Tony. Esse espelho moral incomoda porque a situação de Don não era aquela vivida pelo negro médio americano. Na verdade, sequer é a situação da maioria dos negros de hoje. É uma falácia.
Assim, o filme segue seu próprio Green Book e não explora nenhuma parada perigosa, especialmente no que tange ao enigmático Don Shirley de Mahershala Ali. Há inclusive um episódio de homossexualidade que o filme dramatiza tangencialmente, para nunca mais ser abordado. Um diretor mais habilidoso poderia construir melhor a personalidade de Don para além do negro alienado, mostrando que sua afetação e distanciamento poderiam ser um elaborado mecanismo de defesa – e sobrevivência. Mas, de novo, Green Book: O Guia está muito mais interessado no objetivo de agradar multidões do que em profundidades psicológicas de seus personagens. Resumindo, Green Book: O Guia serve como entretenimento leve de massa. Mas, se você estiver procurando um filme que leve a sério a problemática racial ainda tão atual, o excelente Infiltrado na Klan, de Spike Lee, está aí para ser visto. A indicação dos dois ao Oscar de Melhor Filme aponta para uma Academia confusa quanto à questão racial, que precisa do suporte escapista de filmes como Green Book: O Guia para validação do público. Um espelho de como a própria América encara o racismo: pela ótica distante do branco, que observa, e na pele do negro, que sente.
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AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
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