Nelson Marques Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) e Associação Cultural Cineclube Natal e-mail: [email protected] Poucas vezes a tradução de um título em português reflete efetivamente o conteúdo do filme que ele tenta retratar a partir do título original. Neste caso, o simples e pouco informativo "Michael Clayton" do original inglês é superado de longe pela boa inventividade do título em português (de Portugal) -- que é rara, infelizmente, nesse meio de versões cinematográficas de títulos. Então, aproveitemos a "questão de consciência" de Tony Gilroy, que em seu filme de estreia, nos traz um tema não novo, mas muito interessante, reflexivo e com participações extraordinárias de seus atores e atrizes, escolhidos a dedo: George Clooney, num papel contido e triste, que se revela aos poucos, Tom Wilkinson, extraordinário num papel difícil, completamente desvairado, aparentemente, e Tilda Swinton, que "mostra" toda a sua insegurança num papel dificílimo (ganhou o Oscar de Atriz Coadjuvante, em 2008 por isso mesmo). Até mesmo o "ator" Sidney Pollack (o grande diretor) está bem no seu papel de "menino" bonzinho, mas fundador e diretor de uma grande "banca" de advocacia, a Kenner, Bach & Ledeen (KBL), "personagem" das mazelas do mundo corporativo e de corrupção disfarçada presentes no filme. Tony Gilroy é também o roteirista desse filme de 2007. Ele tem, no entanto, muito mais experiência como roteirista (21 bons roteiros, incluindo vários da franquia Bourne), do que com a direção com apenas 3 outros filmes (The Bourne Legacy, 2012, First Look, 2012 e Duplicity (2009). O filme Michael Clayton foi indicado a 113 premiações, tendo ganho 28 deles, incluindo um Oscar e um Bafta em 2008 para Tilda Swinton. A história propriamente dita é simples. Michael Clayton (George Clooney) trabalha nessa grande firma de advocacia de Nova York numa função de "limpar" os nomes e os erros de seus clientes em razão de ter trabalhado anteriormente como promotor de justiça e vir de uma família de policiais. É, portanto, mais uma função do que um cargo ou posição dentro da empresa (em alguns momentos até surge essa questão quando questionado porque ele não é sócio da firma). Marty Bach (Sidney Pollack), um dos fundadores da KBL, o tem em conta por ele ser o responsável por realizar o trabalho sujo da firma, sem nenhum questionamento. Isso por anos a fio. Apesar de Michael estar cansado e infeliz com o trabalho, ele não tem como deixar o emprego, já que o vício no jogo, seu divórcio e o fracasso em um negócio arriscado, o deixaram repleto de dívidas. Quando Arthur Evans (Tom Wilkinson num trabalho extraordinário), seu amigo e principal advogado da empresa, sofre um colapso nervoso e tenta sabotar todos os casos da U/North uma grande empresa de fertilizantes cliente da "banca", Clayton é, mais uma vez, enviado para solucionar o problema. É quando ele começa a tomar consciência da pessoa em que ele se tornou (isso pode ser visto de maneira magistral nos seus diálogos com seu filho, conversas estas que são uma continuidade das conversas comerciais dele com seus clientes). Mas desta vez parece ser um caso que ele talvez não seja capaz de resolver. A KBL está gerindo um processo multimilionário de uma empresa de agroquímica, a U/North, que parecia encaminhar-se para um brilhante desfecho do qual depende o posto de consultor legal a Karen Crowder (trabalho perfeito de Tina que mostra uma transformação enorme de atitudes frente a uma insegurança crescente). Foi nesse processo que ocorre o esgotamento nervoso de Arthur, que provavelmente porá tudo a perder, inclusive sabotando provas. Vai-se percebendo, no entanto, que o suposto "colapso" nervoso é resultado de uma tomada de consciência crescente frente ao que a U/North fez e estava fazendo no processo. Como disse anteriormente, o filme não aborda uma temática nova. Está já havia sido explorada em dois filmes de considerável sucesso, Erin Brockovich (2000), de Steven Soderbergh e O Advogado do Diabo (1997), de Taylor Hackford. Mesmo assim, Michael Clayton não deixa de ser um bom registro ao destacar alguns pontos interessantes: a personalidade de Michael Clayton-George Clooney, aparentemente muito seco, que procura apenas uma solução para os seus problemas particularmente de natureza financeira, mas de uma profundidade de expressões internas que se modificam continuamente no processo de encontro consigo mesmo; o caráter de natureza absolutamente não penetrável de Tilda Swinton; o caráter maravilhoso, mesmo na sua loucura, de Tom Wilson e o absoluto sangue-frio da personalidade de Sidney Pollack. Creio que este quarteto de personalidades tão diferentes, aliado a um roteiro de alta qualidade, fizeram a diferença neste bom filme. Não há um final grandioso e espetacular, apenas uma retomada de princípios de ética e justiça. A transformação sutil da expressão de George Clooney dentro de um táxi, rodando sem destino pelas ruas de Nova York, acompanhando o rolar dos créditos finais é magistral.
Confira na grade do Amazon Prime Video.
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Nelson Marques Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) e Associação Cultural Cineclube Natal e-mail: [email protected] Se o Brasil é um país competente para fazer e exportar novelas, países de língua inglesa, como EUA e Inglaterra, mostram sua competência como realizadores e exportadores de "sitcoms" de todos os gêneros (como exemplos, lembro de alguns títulos importantes: Seinfeld, The Office, Friends, Rick and Morty, 30 Rock, M.A.S.H., Anos Incríveis, Fleabag, Maravilhosa Sra. Maisel, etc.). "Sitcom" é a abreviatura da expressão inglesa "situation comedy", ou "comédia de situação". Para nós seria melhor dizer "comédia de costumes". Ou seja, são as séries de televisão com personagens comuns onde existem uma ou mais histórias encenadas em ambientes comuns (família, amigos, local de trabalho, etc). Em geral, envolve sempre, ou quase sempre, uma boa dose de humor, misturando drama, suspense, com vários personagens com personalidades bem marcadas, simples ou mais complexas. Modern Family é uma série criada por Steven Levitan e Christopher Lloyd em 2009 e que está presente até hoje na TV, sempre com o endosso entusiasmado de seus fãs (pontuação de 8,4/10 a partir da avaliação de mais de 347.000 pessoas no IMDB). Está no ano de 2020 na sua 11a. temporada e provavelmente a última. Até agora foram exibidos 250 episódios com cerca de 22 minutos cada um. Seus criadores, Stephen e Cristopher estiveram presentes em todos os seus episódios, escrevendo, dirigindo, ou roteirizando. Juntos, com o seu rol de atores e atrizes, receberam 118 prêmios variados, de 383 indicações, e um Globo de Ouro como "Best Television Series", em 2012. As histórias são sempre muito simples, com roteiros enxutos e de qualidade, interpretações sempre competentes, em que é possível refletir sobre a importância da família. No fim de tudo são histórias de "várias" famílias em uma só, com seus estereótipos diversos bem construídos. A primeira temporada de Modern Family foi transmitida no segundo semestre de 2009, mostrando o início das histórias das famílias Prichett e Dunphy. O patriarca, Jay (Ed O'Neill) é casado, em segundas núpcias, com Glória (Sofia Vergara), uma colombiana, e cria o filho pré-adolescente de Glória, Manny (Manuel) Delgado. A filha de Jay, Claire (Julie Bowen) é casada com um atrapalhado corretor de imóveis, Phil Dunphy (Ty Burrell). O casal tem 3 filhos: duas adolescentes, Haley (Sarah Hyland) e a inteligentíssima Alex (Ariel Winter) e o caçula Luke (Nolan Gould). O outro filho de Jay, Mitchell (Jesse Tyler Furgson) é casado com Cameron Tucker (Eric Stonestreet) que acabaram de adotar uma criança vietnamita, a Lily. Ao longo dos episódios, das temporadas e dos anos, é mostrada a vida cotidiana dessa(s) família(s) americana(s) moderna, em suas situações as mais diversas. A "modernidade" e a vivacidade da série acaba advindo exatamente dessa "perda" das posições-padrão de núcleos familiares habituais e a necessidade de se criar novos vínculos e relações fora dos padrões esperados. Ou melhor, já não existem mais papéis pré-estabelecidos. A série trabalha bem com estruturas familiares não habituais, com diferenças de idade e de cultura. Aposta bastante num humor leve e inteligente, onde cada personagem constrói uma personalidade única e bem marcada. A série é levada adiante com competência e sucesso exatamente pelo trabalho "competente" desses atores e atrizes em seus personagens. "Família Moderna" é uma série que explora justamente o conceito que seu título sugere. O formato quase documental de muitos episódios ("falso documentário") torna o trabalho da série fantástico, onde os personagens são convincentes desenvolvendo uma química excelente entre eles. Por tudo isso fica a dúvida se a ideia geratriz da série era retirar estereótipos da família, ou reafirmá-los. Vale a pena conferir. Está na Netflix.
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AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
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