Nelson Marques Cineclube Natal e ACCiRN – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte e-mail: [email protected] Recentemente revi o filme Ender's Game – O Jogo do Exterminador, de Gavin Hood (responsável pela direção e pelo roteiro), realizado em 2013, nos EUA, com Harrison Ford, Ben Kingsley, Asa Butterfield, Viola Davis, Hailee Steinfeld, dentre muitos. A história é bem contada: em um futuro próximo, extraterrestres hostis atacaram a Terra. Com muita dificuldade, o combate foi vencido, graças ao heroísmo do comandante Mazer Rackham. Desde então, o respeitado coronel Graff e as forças militares terrestres treinam as crianças mais talentosas do planeta desde pequenas, no intuito de prepará-las para um próximo ataque. “Ender” Wiggin, um garoto tímido e brilhante, é selecionado para fazer parte da elite. Na Escola da Guerra, ele aprende rapidamente a controlar as técnicas de combate, por causa de seu formidável senso de estratégia. Em razão dessa característica não demora muito para Graff considerá-lo a maior esperança das forças humanas. Falta apenas um treinamento com o grande Mazer Rackham, e depois o garoto estará pronto para a batalha épica que decidirá o futuro da Terra e da humanidade. O filme Ender’s Game – O Jogo do Exterminador é considerado uma adaptação bastante literal do livro homônimo do autor Orson Scott Card*. Ender's Game – O Jogo do Exterminador (Ender's Game), o livro, foi escrito em 1985, sendo hoje a parte introdutória da quadrilogia A Saga de Ender. Esta Saga, iniciada em 1985, foi terminada apenas 11 anos depois, em 1996, com o quarto e último livro, Os Filhos da Mente (Children of the Mind). Depois do O Jogo do Exterminador a história continuou com Orador dos Mortos (Speaker for the Dead), de 1986 e Xenocídio (Xenocide), publicado em 1991. Embora tenha sido lançado há mais de 30 anos, como toda boa ficção científica conseguiu antever algumas situações que estamos passando em tempos atuais. Um das coisas que logo me chamou atenção foi que a família de Ender tem três filhos, mas o terceiro somente veio após autorização do governo, prática essa que a China comunista já está empregando há algum tempo. Interessante que não é a primeira obra futurista que coloca essa situação, sob a justificativa de controle populacional em razão da escassez de comida e problemas habitacionais, sendo esta uma forma de limitar a ação do homem. No caso do livro e do filme o terceiro filho foi justamente Ender, o menino que no final das contas veio para salvar a humanidade, um jovem que acabou sendo o ponto de equilíbrio entre seus irmãos. O mais velho é agressivo, sempre reagindo com força, e a irmã é muito sentimental e quem tem maior intimidade com Ender, que por sua vez consegue unir o sentimento e a força, ainda que pela idade ele tenha dificuldade de lidar com elas. Sendo muito inteligente e com grande visão lógica, acaba usando esse dom para se defender. Tem clareza com relação à diferença entre impor a liderança e ser seguido pelas suas qualidades de líder. Não teme vencer os jogos que disputa e ao mesmo tempo sente compaixão pelos seus adversários, sejam eles quem forem. O filme é uma obra de ficção, mas você já viu essa história na vida real. Por mais que Ender's Game – O Jogo do Exterminador seja baseado em um livro escrito em 1977 por Scott Card (a noveleta original, mas o livro expandido é de 1985), é impressionante notar as semelhanças com as posturas belicistas das grandes potências, Estados Unidos e Rússia, por exemplo, perante o Iraque e o Afeganistão, quando decidiram invadir esses países como forma de “prevenção” diante de possíveis ataques terroristas. O início de Ender’s Game muda os personagens, e os “alienígenas”, mas mantém o cenário. Por trás da justificativa de que é preciso deter uma ameaça alienígena (ou os estrangeiros, ou os “alienistas”) que quase aniquilaram a humanidade 50 anos atrás (na história original), existe todo um aparato militar para exterminar os antigos invasores – por mais que eles não tenham aparecido mais desde então. Diante dessa lógica “artificial” – mas real, as guerras recentes que o digam –, parte-se para outro extremo, aquele do uso de crianças como armas de guerra. “Ender” Wiggin, aos seis anos de idade, deixa sua família na Terra para iniciar-se na Escola de Guerra junto a outros escolhidos. Sua genialidade na programação de computadores, sua habilidade em estratégias de combate e de guerra e sua compaixão fazem de Ender uma figura única. Ele é levado aos limites da resistência humana para desempenhar seu papel na invasão que se aproxima e na qual o futuro da Humanidade será decidido. As crianças e adolescentes da Escola de Guerra serão as marionetes incentivadas pelo status quo militar com o objetivo de planejar, treinar, matar, destruir, aniquilar, através do exercício de jogos de guerra. “Ender” é o “escolhido”, aquele que o coronel Hyrum Graff (Harrison Ford) acredita ser o jovem que livrará a humanidade do mal extraterrestre. Criado em uma família que endeusa o serviço militar e numa civilização onde a cultura do medo está presente a todo instante, com a repetição contínua de cenas do ataque de décadas atrás, Ender possui um dom nato para criar estratégias, de forma a atingir objetivos a curto e médio prazo. É justamente por isso, aliado ao seu grau de concentração, que ele é tão valioso dentro do núcleo militar. Assim sendo, logo parte para a escola de guerra, local onde deve aprimorar suas qualidades naturais. É neste trecho que acontece boa parte das cenas de ação do filme, quase sempre dentro de um local que mais parece um espaço virtual de qualquer simulação dos inúmeros jogos de guerra que existem por aí: por mais que ofereça riscos, todos os que lá estão têm plena consciência de que nada é questão de vida ou morte real. Ou seja, podem se arriscar à vontade que o prejuízo maior é a perda da batalha do momento. Entretanto, em meio a este cenário que lembra os videogames de estratégia, é moldado um objetivo oculto: o aperfeiçoamento da vitória a todo custo, sem levar em conta possíveis sacrifícios – inclusive de vidas humanas. É o ápice da cultura da guerra, onde apenas a vitória interessa, seja ela como for. A história é mostrada com um estilo e vigor que há muito não se via. A trajetória do treinamento, a descrição dos jogos e o crescer de Ender são “contadas” com habilidade. Ender é um jovem cadete que chega à academia com o peso de ser a esperança da humanidade. No livro, seguimos Ender dos seis aos dez anos de idade; no filme, o tempo é condensado, e o ator Asa Butterfield, de 16 anos, dá a Ender um perfil mais de puberdade. Esse desafio de comprimir o livro sem perder sua força - que está justamente no passar do tempo e na repetição de situações de treinamento na academia - é o principal obstáculo no caminho do roteirista e diretor Gavin Hood. Ele elimina toda a subtrama geopolítica e ideológica na Terra (o que acaba reduzindo a importância dos irmãos de Ender ao mínimo) e se concentra nos jogos em gravidade zero, que afinal são o grande chamariz de Ender's Game em termos cinematográficos. O resultado é um filme que flerta timidamente com o espetáculo e, na obrigação de ser fiel ao material original, dilui as muitas ideias do livro. O desfecho de Ender’s Game (o livro e o filme) surpreende e ameniza a massacrante ideologia do medo e do revide presente no filme. Este possui efeitos especiais interessantes, principalmente dentro da tal Sala de Jogos. O resto do elenco tem uma atuação nada mais que burocrática, mesmo Viola Davis, cujo personagem serve de contraponto ao de Ford. O filme é interessante, fiel ao livro e com uma ampla capacidade de discussão sobre assuntos como ética pessoal e militar, formas de educação, controle de natalidade entre outros. O enredo na história trazida por Scott Card se respalda nas questões vivenciadas pelo autor na década de 70, mas se olharmos de uma forma mais ampla e crítica lembra situações contemporâneas. Scott Card, sem dúvida, entende a condição humana e tem coisas de valor real para nos dizer a respeito da vida. Que são bem mostradas no filme ao estabelecer as relações pessoais as mais variadas. Scott Card teve uma capacidade imensa de antever, com a sua ficção científica, escrita há mais de 30 anos, a realidade das guerras despersonalizadas travadas hoje no mundo real (qualquer soldado que controla drones à distância, por um console, vai se deparar com os mesmos dilemas morais enfrentados pelo menino “Ender” Wiggin no livro de 1985 e no filme de 2013). O futuro da franquia Ender’s Game – O Jogo do Exterminador ainda não está garantido. A ficção científica rendeu US$ 27 milhões em seu fim de semana de estreia, e alcançou US$ 61,7 milhões nos EUA – valor extremamente baixo para um filme que custou US$ 110 milhões. Hoje, fazendo-se um balanço geral, o filme pelo menos se pagou, em termos de bilheteria. Por isso mesmo, dificilmente uma sequência será aprovada. Porém, o produtor Roberto Orci diz que há uma chance da história continuar. A franquia de livros da Saga de Ender teve uma sequência lançada em 1986, intitulada Orador dos Mortos (Speaker for the Dead), como vimos anteriormente. Este narra os eventos de um futuro distante (3.000 anos depois), quando a humanidade já se expandiu universo afora, ocupando os mundos deixados por uma espécie alienígena vencida pelo herói Ender Wiggin no “jogo” que no fim era a batalha final ocorrida três mil anos antes. Se a franquia continuar nos cinemas, o enredo trará, provavelmente, uma história totalmente original, descartando a sequência do escritor Orson Scott Card. *Orson Scott Card nasceu em 24 de agosto de 1951, em Richland, no Estado de Washington. Estudou em escolas públicas na Califórnia, e fez o equivalente ao nosso 2o. grau no Arizona. Fez o curso universitário na Brigham Young University, no estado de Utah. Veio ao Brasil como missionário da Igreja dos Santos dos Últimos Dias (mórmons), realizando missões de janeiro de 1972 a outubro de 1973, vivendo em cidades como Araraquara, Ribeirão Preto, Araçatuba, Campinas, Itu, todas no interior do estado de São Paulo e também na capital paulista, São Paulo. Enquanto aqui esteve, escreveu ou deu início a vários rascunhos de suas obras, incluindo parte das histórias desenvolvidas na Saga de Ender. Voltando aos EUA, Scott Card completou seus estudos universitários, formando-se Bacharel em Artes, com especialização em Teatro, em 1975. Em 1977 escreveu a noveleta “Ender's Game”, publicada na revista Analog de agosto de 1977. Mais tarde ela seria expandida para tornar-se o romance O Jogo do Exterminador (em 1985), primeiro volume da Saga de Ender, e objeto da adaptação cinematográfica Ender's Game – O Jogo do Exterminador, em 2013. Atualmente mora com a família na cidade de Greensboro, Carolina do Norte, nos EUA. O livro Ender's Game ganhou de imediato o reconhecimento do público e a atenção da crítica. Ainda em 1985 ele ganhou dois dos mais importantes prêmios de ficção científica, o Hugo (concedido anualmente na Convenção Mundial de Ficção Científica por meio de votação efetuada pelo público) e o Nébula (concedido anualmente pela Science Fiction Writers of America). Recebeu também prêmios da revista SF Chronicle e o Hamilton-Brackett Memorial Award. Ganhou ainda o Prêmio Edwards da Associação Americana de Bibliotecas, por sua contribuição à literatura para jovens. Atestando a qualidade de suas histórias, Orson Scott Card ganhou em 1986, novamente, os dois prêmios, o Hugo e o Nébula, desta vez pelo livro, o segundo da Saga, Orador dos Mortos (este ganhou ainda os prêmios da revista Locus e novamente da revista SF Chronicle). A Saga de Ender poderia ser chamada da saga da evolução ética da humanidade. As especulações científicas e os dilemas éticos apresentados nos livros são tão eletrizantes quanto a ação desenvolvida nas várias histórias e no filme. A escalada do personagem “Ender” Wiggin, rumo ao confronto com ameaças alienígenas e as profundas implicações psicológicas e dramáticas de sua trajetória cativaram público e crítica.
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AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
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