Nelson Marques Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) e Associação Cultural Cineclube Natal e-mail: [email protected] Confesso que tive muita resistência em assistir ao filme Mank quando soube de sua história e de sua proposta. Pela admiração que tenho pelo diretor Orson Welles e pelo respeito que tenho pelo filme Cidadão Kane, uma das mais importantes obras cinematográficas já realizadas, alguém que se atreva a “mexer” com os dois, ao mesmo tempo, era muita provocação para uma pessoa só. Criei coragem e me propus a assistir Mank, procurando me despir dos preconceitos já explicitados, tanto quanto possível. O resultado foi extremamente compensador: o filme é maravilhoso e para mim, que me considerava de espírito aberto, mais uma lição. Cidadão Kane, realizado há 80 anos (!!), foi o primeiro filme de Orson Welles, realizado quando ele tinha apenas 25 anos de idade. Ele foi um gênio criativo, mesmo que com pouca idade, mas contou com juventude e arrojo para revolucionar a direção e a condução do filme. É preciso lembrar que foi dele também outra revolução, desta vez no rádio, com a “criação” fictícia da montagem radiofônica “A Guerra dos Mundos” em 1938. Ainda hoje o filme é cultuado como uma obra de engenhosidade e criação, uma aula magistral de técnica cinematográfica, estrutura e narrativa. O filme foi inspirado na vida do magnata da imprensa William Randolph Hearst, numa visão muito realista e negativa, e por isso mesmo, mal conseguiu recuperar o orçamento gasto com a sua produção pela publicidade negativa da imprensa e do império liderados por Hearst. Tudo isso acompanhou o filme por anos, como uma maldição. Mesmo assim, com esse começo um tanto atribulado, teve muitas indicações ao Oscar de 1941, ganhando apenas um único deles, exatamente... melhor roteiro! Dado ao seu autor, Herman J. Mankiewicz. Mankiewicz o escreveu a quatro mãos, junto com Welles. Pelo menos é o que contava a história... até agora. Mankiewicz, nascido em Nova York em 1897, foi roteirista nos EUA, jornalista correspondente do Chicago Tribune, em Berlim, e crítico de teatro do The New York Times e do The New Yorker, e morreu em 1953, aos 55 anos. Pela sua habilidade no texto e na escrita era frequentemente chamado para “melhorar” roteiros de outros roteiristas. Em geral, sem nunca receber crédito por isso. Alguns de seus projetos mais famosos incluem filmes como “O Mágico de Oz” (The Wizard of Oz), de 1939, Man of the World, de 1931, “Jantar às Oito” (Dinner at Eight), de 1938, Pride of the Yankees, de 1942, e “O Homem do Dia” (The Pride of St. Louis), de 1952. Entre o final dos anos 1920 e início dos anos 1930, quando era o chefe dos roteiristas na Paramount, era um dos profissionais mais bem pagos de Hollywood, mas infelizmente não conseguiu dar conta de seus desafios e entrou num processo de decadência contínua, agravada por um alcoolismo crônico. Esses momentos terríveis podem ser acompanhados com angústia e intensidade no filme Mank, que mostra justamente o processo de escrita do roteiro de Cidadão Kane. O filme, dirigido por David Fincher (diretor de muitos curtas musicais e dois outros filmes indicados ao Globo de Ouro e ao Oscar, The Social Network, em 2010, e The Curious Case of Benjamin Button, em 2008) para a Netflix, conta a batalha de Herman Mankiewicz (numa caracterização extraordinária de Gary Oldman) contra o alcolismo, problemas de saúde e memória (além do próprio Orson Welles) enquanto tenta terminar o roteiro encomendado por Welles. O seu isolamento, imposto ou autoimposto, em um rancho em Victorville, no Condado de San Bernardino, na Califórnia, como o filme vai mostrando pouco a pouco, e o roteiro que está sendo escrito finalmente será a sua obra máxima (segundo ele próprio), mas também o seu canto do cisne. Depois desse roteiro não conseguiu produzir mais nada de qualidade. Mank é, acima de tudo, uma tripla homenagem de David Fincher. A Mankievicz, o homem que foi deixado de lado nos livros de e sobre cinema em razão da personalidade forte e a engenhosidade de Orson Welles, como bem mostrada no filme. De certo modo ao próprio Orson Welles, mostrando a grande interação que ele teve cobrando seguidamente responsabilidade e seriedade de Mankiewicz, fixando prazos cada vez mais curtos para a finalização do roteiro. E, princípio de tudo, ao seu próprio pai, Jack Fincher: a origem de Mank data dos anos 1990, quando o pai de Fincher, jornalista e roteirista de Mank ainda estava vivo. O texto que não parece acima da média no papel, é muito melhorado na direção precisa de Fincher ao fazer idas e vindas através do Cidadão Kane. Através desse recurso podemos perceber o valor de Mankiewicz fazendo o roteiro revolucionário do Cidadão Kane e deixando pendente a contribuição de cada um no resultado final. Foi obra de Welles, de Mankiewicz, ou de ambos? A conclusão pode ser tirada agora quando você assistir essa pequena obra prima. Mank é um filme sobre as assombrações que povoam os velhos palácios da Era de Ouro de Hollywood, e sobre como esses palácios oferecem preciosos dioramas de opressões e dinâmicas de classe que transcendem o dia a dia de Hollywood e alcançam as vidas na Califórnia, nos EUA, no mundo. Para os aficionados por imagem e cenografia, é um prato cheio, e ao mesmo tempo presta tributo a uma das grandes inovações técnicas de Cidadão Kane, a profundidade de campo que amplia os cenários e nos anos 1940 ajudou a emancipar o cinema da estética da montagem teatral. Deve ter sido uma experiência enlouquecedora não só para Gary Oldman, que no papel de Mankiewicz precisa atender às dezenas de “takes” pedidos por Fincher, com falas entregues em velocidade dobrada, mas principalmente para os profissionais de iluminação. Desde os anos 1990, Fincher sempre quis fazer o filme em preto-e-branco, e o resultado meticuloso - assinado pelo diretor de fotografia Erik Messerschmidt, parceiro relativamente recente do diretor - está plenamente em sintonia com essa megalomania. Todo cenário parece cheio de detalhes obsessivos, cada um iluminado com dezenas de discretos holofotes de luz, como se capturados e miniaturizados em globos-de-neve, como aquele que representa a infância pura de Charles Foster Kane, figura emblemática no Cidadão Kane. Mas no álbum de globos-de-neve feito por Mank não há mais traços de inocência, e a própria fotografia em preto e branco denota o gosto agridoce dessa realidade deslocada, artificial. Esse paralelo entre Cidadão Kane e Mank funciona muito bem; ambos são filmes sobre um fim de inocência, sobre a desilusão com o sonho americano, e no caso de Mank a deterioração só parece bem mais avançada, estabelecida. Não deixa de ser uma obra de cinismo que está bem inserida em 2020. O filme suprime a importância da RKO na criação de Cidadão Kane justamente para centrar fogo nos estúdios da Metro, a grande corporação vilã, que eclipsava tudo que não fosse nos seus padrões, o que dizer então dos “outsiders”, como Welles à época. Deve ser destacada também a parte técnica do filme e alguns de seus personagens, além de Gary Oldman que já destaquei no princípio. O elenco está soberbo devido à presença de Amanda Seyfried, Tom Pelphrey, Lily Collins, Tuppence Middleton, Tom Burke e Charles Dance. A música é de Trent Reznor e Atticus Ross e a edição é de Kirk Baxter. A cinematografia de Erik Messerschmidt (diretor de fotografia de vários episódios da série Mindhunter, em 2017 e 2019) é extraordinária, valorizando a opção de Fincher de realizar um filme em preto-e-branco. Por outro lado, parece que a maldição imposta ao filme Cidadão Kane se estende em 2020 ao filme Mank. Apesar de suas notórias qualidades o seu percurso pelos principais festivais de premiação do início do ano tem sido frustrante. Das suas seis indicações ao Globo de Ouro, não conseguiu levar nenhuma. Para o Oscar, no próximo mês de abril, teve dez indicações. Espera-se que essa injustiça seja reparada.
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Nelson Marques Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) e Associação Cultural Cineclube Natal e-mail: [email protected] Doctor Who, uma série de TV britânica iniciada em 1963 continua sendo apresentada em pleno século 21, 57 anos depois de seu início. A história em si é bastante simples: são as aventuras de um excêntrico extraterrestre, conhecido como “Doutor”, um Senhor do Tempo do Planeta Gallifrey. Ele viaja pelo tempo e espaço em uma máquina do tempo, na verdade uma nave espacial, a TARDIS (acrônimo para Time and Relative Dimension in Space – Tempo e Dimensões Relativas no Espaço), que tem a forma de uma cabine telefônica (azul, não vermelha) da polícia inglesa da época, para proteger a Terra e o cosmos de todos os tipos de perigo e de seus inimigos. Destes, os mais recorrentes são os Daleks, Cybermen e o Mestre, outro Senhor do Tempo, que foi renegado. Da esquerda para a direita e de cima para baixo todos os atores e a atriz que personificaram (ou, como se diz na série, “encarnaram” ou “regeneraram”) o Dr. Who: William Hartnell, Patrick Troughton, Jon Peitwee, Tom Baker, Peter Davison, Colin Baker, Sylvester McCoy, Paul Megann, Christopher Eccleston, David Tennant, Matt Smith, Peter Capaldi e Jodie Whittaker (desde 2017). Suas posições na série foram as seguintes: A Globoplay tem os direitos de apresentação no Brasil da versão mais recente iniciada em 2005, num total de 12 temporadas completas. Esta versão de 2005, uma produção de Russel T. Davies, é uma retomada direta da série que durou de 1963 até 1989, apesar dos vários spin-offs em várias mídias que existiram desde então. São 147 episódios normais, mais vários episódios especiais, e especiais de Natal, uma tradição continuada desde a 1ª. temporada, a de 1963, com o personagem carismático Dr. Who. Este personagem clássico agora, e pela primeira vez, é personificado por uma mulher, Jodie Whittaker, sendo o 13º. Dr. Who da história desta série. Cada uma das temporadas, da 1ª. até a 6ª., de 2005 até 2011, tem 14 episódios (13 normais e mais um especial de Natal), com cerca de 45 minutos de duração. A 7ª. temporada, 2012-2013, teve 16 episódios. Entre 2014 e 2017, 8ª. à 10ª. temporada foram 13 episódios por temporada, enquanto que as duas últimas, 11ª. e 12ª., em 2018 e 2020, foram de apenas 11 episódios cada uma. Todas elas mantiveram a tradição de apresentar um episódio especial na época do Natal. A série Dr. Who de 2005 começou a sua exibição no Brasil no já extinto canal People + Arts, depois pela TV Cultura de São Paulo, seguindo pela Netflix entre 2011 e 2016, canal Syfy Brasil, entre 2016 e 2017, Looke em 2019 (apenas as temporadas de 1 a 11), e finalmente a Globoplay a partir do 2o. semestre de 2019, já incluindo a 12ª. temporada. A série britânica clássica foi composta por 26 temporadas, exibidas pela BBC One de novembro de 1963 a dezembro de 1989. A criação foi de Sydney Newman, C. E. Webber e Donald Wilson. Nunca ela foi exibida regularmente no Brasil. No total foram desenvolvidas 295 histórias em cerca de 800 episódios regulares (exatamente 861), além de muitos especiais e de Natal. Desses, consideram-se perdidos 97 deles devidos a problemas técnicos nos arquivos da BBC.
A série desde o seu início, em 1963, recebeu o reconhecimento da crítica e do público e inúmeros prêmios. O programa está listado no Guinness World Records como a série de ficção científica de mais longa duração no mundo e como a “mais bem sucedida série de ficção científica de todos os tempos”. Ela sempre foi reconhecida por suas histórias imaginativas, criativas, sem muitos efeitos especiais, devido ao seu baixo orçamento e pelo uso pioneiro de música eletrônica como trilha sonora e temas característicos. A música tema de Doctor Who foi uma das primeiras músicas eletrônicas feitas para a televisão (lembrem-se, em 1963 não existiam sintetizadores eletrônicos). O tema original é de Ron Grainier. Em 2005, Murray Gold foi o responsável por criar um novo arranjo que durou até 2018, quando foi a vez de Segun Akinola criar um novo arranjo. Digno de nota é que a produção da série nunca se afastou da tradição da música eletrônica. Apesar da série Dr. Who ter se encerrado em 1989, nunca se parou de pensar na sua continuidade. Houve uma tentativa de retomar a série em 1996, frustrada, no entanto, pois ficou apenas na realização de um filme-piloto que se transformou num telefilme. Por outro lado, se outra série não saiu do papel, vários spin-offs foram realizados: Torchwood, em 2006, As Aventuras de Sarah Jones, em 2007, K-9, em 2009, Class, em 2016. Para os interessados no tema viagem no tempo, outras séries de TV já “aconteceram” no Brasil: “Túnel do Tempo” (The Time Tunnel), produção americana da CBS, criada por Irwing Allen e apresentada de 1966 a 1967, ainda quando se chamava série de seriado, herança mais antiga do cinema, durando apenas uma temporada (30 episódios de cerca de 50 min. de duração; foi apresentada no Brasil pela TV Tupi, Rede Globo, Fox, TCM e TV Gazeta); “Contratempos” (Quantum Leap), criação de Donald Bellisario, apresentada pela NBC de 1989 a 1993, e no Brasil pela Rede Globo, em cinco temporadas, num total de 97 episódios, com duração média de 45 minutos; “O Imortal” (The Immortal), série americana para TV da ABC, criada por Robert Specht e apresentada de 1969 a 1971, num total de 15 episódios de cerca de 60 minutos. No Brasil foi exibida pela extinta TV Tupi. Foi baseada no livro The Immortals, do escritor de ficção científica James E. Gunn, lançado em 1962 (há uma edição em português de Portugal da Galeria Panorama, muito antiga). |
AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
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