Nelson Marques Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) e Associação Cultural Cineclube Natal e-mail: [email protected] A série Outlander, presentemente na grade da Netflix, é uma boa pedida para quem quer viajar à Escócia sem sair de casa. Com uma trama sobre viagem no tempo, com idas e vindas separadas por cerca de 200 anos, entre 1945 e 1743, que incluem passagens pela Segunda Guerra Mundial, produção traz cenários impressionantes de Inverness e de outras regiões da Escócia. A atração é baseada em uma série de livros com o mesmo nome, escrito pela autora Diana Gabaldon. Os títulos foram originalmente publicados em 1991, nos EUA, mas somente ganharam vida em 2014 pela produtora americana Starz, que comprou os direitos da história de Gabaldon. Os livros ganharam uma adaptação para a televisão, realizada por Ronald D. Moore, para desenvolver o projeto, e Jim Kohlberg para produzir. A própria Gabaldon foi contratada como consultora para a produção da TV. A série foi iniciada em agosto de 2014 e tem, até o momento, cinco temporadas, com 16 episódios na primeira, 13 em cada uma das temporadas subsequentes até a quarta, e a última com 12 episódios, num total de 67 episódios com duração entre 50 e 90 minutos (a Netflix tem apenas as primeiras quatro). A série Outlander foi renovada e a 6ª. temporada terá também 12 episódios. Na história, Claire Randall é uma mulher moderna do século XX, enfermeira atuando na 2ª. Guerra Mundial, que em viagem com seu marido a Inverness, na Escócia acabam sendo separados após Claire ser misteriosamente transportada através do tempo até 1743, na mesma Escócia. Ela precisa se adaptar, já que chega num momento num momento dos levantes jacobinos ou irá morrer enquanto tenta descobrir como voltar ao seu próprio tempo e ao marido, Frank. Armada apenas com sua inteligência e conhecimento médico de seu tempo como enfermeira na Segunda Guerra Mundial, ela usa seus interesses para manobrar seu caminho, mas, no entanto, acaba se deparando com feitiçaria, amor e rebelião. É, então, que ela conhece o jovem guerreiro escocês Jamie Fraser (do Clã MacKenzie) e, Jonathan Randall, antepassado de Frank, capitão inglês, e inimigo dos escoceses. A série, já está na sua 5ª. temporada, mistura a intriga da corte na Escócia, Inglaterra e França, com a guerra, simultaneamente, para trazer outro drama viciante para a televisão. Deve ser lembrado, no entanto, que é uma atração para o público adulto, contendo muitas cenas que incluem nudez, agressão sexual, violência e… violência. A série se passa na Escócia do século XVIII, com uma caracterização impecável e um figurino digno de nota, e ela realmente é gravada no(s) local (ais). Por isso que afirmei logo de início que era uma excelente oportunidade para conhecer a Escócia e arredores. A fotografia da série (da equipe de Neville Kidd) é belíssima e se você já foi até lá, ou pretende ir, dá para fazer um roteiro com os locais por onde se desenrola a trama. Digna de nota é a relação entre os vários personagens em Outlander. Não só a química entre os dois principais personagens, Claire Beauchamp (Caitriona Balfe) e James “Jamie” Fraser (Sam Heughan), como a atuação impecável dos atores e atrizes secundários (Tobias Menzies, em dois papéis, Frank Randall e Jonathan “Black Jack” Randall, Graham McTavish, também em dois papéis, Dougal Mackenzie e William “Buck” Mackenzie, Duncan Lacroix, como Murtagh Fitzgibbons, Grant O`Rourke, como Rupert MacKenzie, dentre muitos). Jamie e Claire se tornam um casal perfeito e poderoso, com uma intensa paixão de um pelo outro, mesmo com os muitos altos e baixos da história. O roteiro (Ronald D. Moore e Diana Gabaldon) transfere muito bem a escrita posta no texto original de Diana Gabaldon fazendo um trabalho fantástico com cada personagem. Até mesmo os vilões exibem qualidades resgatáveis, sendo um lembrete para os telespectadores de que um vilão nem sempre é um vilão para todos. Cada decisão, mesmo as mais pobres, faz todo o sentido com cada personagem e suas ações sempre têm consequências, mesmo que não compensem muito mais. Geillis Duncan/Gillian Edgars (Lotte Verbeek) é o melhor exemplo disso, porque o espectador nunca tem certeza se as ama ou as odeia. Destaca-se também a bela trilha musical de Bear McCreary (autor de mais de 115 trilhas musicais entre games, séries, e filmes) e a canção (tema de abertura) “The Skye Boat Song”, de Raya Yarbrough. Esta é uma adaptação do poema de Robert Louis Stevenson – “Cante-me uma canção de um rapaz que se foi” – com a música folclórica escocesa. Além de ter uma história bem contada, a série Outlander tem um talento especial para reviravoltas em sua trama. Qualquer coisa pode acontecer bem, mas pode ir para uma direção completamente diferente. Nem sempre pode resultar numa reviravolta gigante. Planos podem ser feitos, mas a vida acaba colocando os personagens em uma aventura completamente diferente. Na maioria das vezes, essas aventuras são um produto das escolhas que o personagem faz, anteriores ou há muito mais tempo. Isso fica muito evidente em diversos momentos do desenrolar da história em Outlander. No meu ponto de vista, no entanto, o maior “personagem” da série, é a cultura das Terras Altas na Escócia. Da comida, aos costumes, à hierarquia da sociedade… A série faz um trabalho impressionante ao nos dar uma visão desse mundo. Mesmo que Outlander seja considerada tecnicamente uma série de fantasia, uma vez que Claire viaja no tempo através da magia Druida, sem necessidade de maiores explicações, a maior parte da história é sobre destruição da cultura das Terras Altas nas mãos dos soldados ingleses. Deve ser uma pílula difícil de engolir para os ingleses, mas é, infelizmente, um pedaço da história que ainda mantém ramificações na relação entre a Escócia e a Inglaterra em nosso mundo moderno. Talvez por isso mesmo a série tenha tido tanto sucesso na Escócia e outros membros do Reino Unido e menos na Inglaterra. Mas talvez apenas o amor à história de Claire e Jamie (e à História) responde pelo sucesso mundial da série Outlander.
Para aqueles fanáticos por esse “trânsito” entre épocas diferentes e viagens no tempo existem alguns outros filmes muito interessantes, mesmo que a temática não tenha nada a ver com a apresentada em Outlander: Timeline, 2003, de Richard Donner, da novela de Michael Crichton (a história aqui se passa na França, no século XIV), Te Amarei para Sempre (The Time Traveler´s Wife), 2009, de Robert Schwemtke, A Casa do Lago (The Lake House), 2006, de Alejandro Agresti (este é uma refilmagem de um filme coreano, Siworae (Il Mare), 2000, de Hyun-seung Lee) e Os Visitantes (Les Visiteurs), 1993, de Jean-Marie Poiré (dois cavaleiros medievais são transportados do século XII para 1992).
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Nelson Marques Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) e Associação Cultural Cineclube Natal e-mail: [email protected] Uma minissérie dramática de faroeste realizada em 2017, com sete episódios de cerca de 70 minutos cada um, está na programação da Netflix (os episódios oscilam entre 41 e 80 minutos). Scott Frank é o responsável pela criação, direção e roteiro. No elenco está Jack O’Connell, Michelle Dockery, Scoot McNairy, Merritt Wever, Sam Waterston, Jeff Daniels, Samuel Marty, Tess Frazer e outros. Godless tem uma estória simples que se pode contar em não mais do que três linhas: “Um bandido implacável aterroriza o Oeste à procura de um desertor de seu bando que encontrou uma nova vida em uma cidadezinha chamada La Belle habitada apenas por mulheres”. Ou mais simples ainda, exigindo apenas uma linha: “aquela série de cowboys que tem uma cidade só com mulheres”. Esse foi um trabalho de propaganda que nos bombardeou incessantemente com essa informação. Em minha opinião, e infelizmente, em uma tentativa de vender a série, justamente por seu elemento menos importante, por ser o mais artificial e menos desenvolvido. Há outros muito mais importantes, como veremos mais adiante. Posto dessa forma, assim a seco, aparentemente a série não tem nenhum atrativo. Ledo engano, pois a criação de Scott Frank, com a participação de Jeff Daniels, Michelle Dockery e Jack O´Connell é um digno representante do gênero. Mesmo contando com a participação significativa de mulheres (e também de negros), contrariando os cânones do gênero, é um dos melhores faroestes dos últimos anos. A fórmula do faroeste já é algo que perdura por muitas décadas no cinema americano. Clássico e relativamente imutável, o gênero explora sempre o século 19, envolvendo nativos americanos e os recém-chegados imigrantes europeus através de embates e duelos por terras, respeito, dinheiro, entre outros bens. Por mais que já tenha tentado atualizá-lo, Hollywood dificilmente traz novos elementos ao gênero - e é aqui que entra Godless, que mexe em um dos principais pontos do faroeste que é o fato da maioria dos personagens ser protagonizada por homens, deixando sempre as mulheres como prostitutas ou donas de casa. Outros elementos contam ainda menos. O fato de a cidade ter uma maioria de mulheres é explicado várias vezes no desenrolar do filme, seja pela conversa entre elas, seja pela presença, ou quase onipresença de uma mina dentro da cidade. A cidade teve todos os homens em idade de trabalho mortos simultaneamente em um desabamento na mina de prata que era o seu sustento econômico. Todos os habitantes remanescentes – mulheres, crianças, idosos, o xerife e seu ajudante – tentam sobreviver da forma como dá, mesmo que isso não seja muito bem explicado. Só se sabe que algumas dessas mulheres precisam tocar a vida e para isso algumas delas domesticam e vendem cavalos. Porém, por mais que esse seja um fato curioso sobre a série, não é o foco da produção. Godless acompanha, assim como a maioria dos faroestes, o embate entre dois homens: o criminoso Frank Griffin (Jeff Daniels) e seu companheiro que o traiu Roy Goode (Jack O'Connell). O vingativo Griffin promete destruir a cidade que estiver abrigando Roy, além de matar toda a sua população. Acontece de Roy encontrar refúgio exatamente na aparentemente indefesa La Belle, e, mais ainda, exatamente na fazenda de Alice. Mesmo que mantenha os tradicionais moldes do faroeste, Godless ousa ao introduzir uma dúzia de fortes personagens femininas que variam da ex-prostituta que virou professora Callie Dunn (Tess Frazer), a dona do próprio rancho Alice Fletcher (Michelle Dockery), até a maravilhosa viúva do prefeito que passa a tomar conta da cidade, Mary Agnes (Merritt Weaver, excelente no papel). Cada uma das mulheres de La Belle toma para si os trabalhos que eram de seus maridos e mantém todas as responsabilidades que já tinham. Ainda assim, para todos que olham de fora, a cidade está despreparada e desprotegida para receber e enfrentar alguém como Frank Griffin e sua gangue de mais de 30 homens - e tudo conspira contra essas mulheres. Essa é a outra ponta narrativa da minissérie: a gangue de foras-da-lei comandada pelo temido Frank que aterroriza o oeste americano em sua caçada incessante a Roy Goode, ex-integrante do grupo que, agora, perturba a gangue constantemente, para profunda irritação e desgosto de Griffin. Roy, ferido, acaba na fazenda de Alice Fletcher, nos arredores de La Belle, onde sua habilidade com cavalos o torna valioso, já que ela tem vários deles que precisam ser domados para serem vendidos. É Roy Goode, então, que faz a ponte entre as duas narrativas que, porém, andam em paralelo ao longo de toda a minissérie, convergindo para o óbvio e mais do que esperado tiroteio final somente no último episódio. Mas, até aí, não há problema algum. De certa forma, olhando por alto, a coisa parecia que funcionaria assim até o fim. E isso especialmente se considerarmos que é Roy Goode o efetivo protagonista, o super-herói unidimensional de faroestes de outrora que não só é encantador de cavalos, como também um pistoleiro sem igual e um homem que, apesar de ter vivido anos em meio a bandoleiros assassinos, tem coração bom ao ponto de quase adotar Truckee (Samuel Marty), filho de Alice, como seu próprio filho. Com isso traz à nossa lembrança, um dos grandes clássicos do faroeste, “Shane” (“Os brutos também amam”), de George Stevens, realizado em 1953, com Alan Ladd e Jean Arthur. Em termos gerais, e/ou mais técnico, Godless tem mais o que mostrar. A fotografia é muito bonita, muito em razão do uso de filmagens em plano geral de locações que deixam clara a desolação da fronteira americana nesse período. A bela linguagem de cores separa o presente do passado, com transições para o passado com filtro em preto-e-branco que deixam apenas transparecer cores aqui e ali. Essas cenas dão o contexto necessário para entendermos exatamente quem são aquelas pessoas. Além disso, as atuações de Daniels, Waterson, Bobb, McNairy e Brodie-Sangester merecem elogios, assim como as de Wever, Harvey e Morgan. Todos eles acabam valorizando sobremaneira a minissérie. Godless é uma bela obra que atualiza o faroeste sem mexer muito na essência que o torna um clássico. Com excelentes personagens, uma trama interessante e um visual arrebatador, a produção foi uma das melhores de 2017. |
AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
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