Nelson Marques Cineclube Natal e ACCiRN – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte e-mail: [email protected] “… Um “defeito” no espaço-tempo permite que Vera salve a vida de um garoto, mas isso a leva a perder a própria filha...” Essa é basicamente a história que acontece entre duas tormentas que duram 72 horas, mas situadas em dois momentos temporais diferentes, separados por 30 anos. A tormenta é o elo de ligação entre personagens diversos que estão separados no espaço-tempo, da época da queda do muro de Berlim à atualidade. A conexão entre as duas épocas, durante duas tempestades, dá-se através de antigos aparelhos de televisão e a uma sua câmara de vídeo acoplada a esses. Tais objetos estão presentes na mesma casa, agora habitada pela protagonista Vera e sua família. O diretor Oriol Paulo, ele mesmo o roteirista junto a Lara Sendim, sem precisar se aprofundar na questão temporal, mostra, através de uma história muito bem construída, que as suas épocas e os seus diferentes personagens se comunicam através do vídeo e da TV como resultado do distúrbio (elétrico?, geofísico?, outro qualquer?) provocado pelas duas tempestades ocorridas em tempos diferentes. Um possível crime, acontecido no passado e a morte quase involuntária decorrente dele, de um menino, atinge Vera (um bom papel de Adriana Ugarte) no presente e a leva a pretender evitar que ele ocorra… Nesse momento, o conhecido efeito borboleta se faz presente… mudanças no passado trazem consequências para o futuro, mesmo que você queira que elas não aconteçam. A boa intenção de Vera terá como consequência o não nascimento de sua filha e uma relação estranha e inexplicável (para ela mesma) com o seu marido. Oriol, de forma competente, investe de maneira precisa nos detalhes de vidas que geram realidades completamente distintas. A angústia entre essas que se transformam, de maneira involuntária. A lembrança de eventos que não mais deveriam existir monta um quebra-cabeças inventivo, misturando realidades e universos distintos. Oriol já havia percorrido essa trilha em outro filme de sua autoria e igualmente inventivo, se bem que de outra temática, o excelente Um Contratempo, de 2017 (comentado por meu amigo Sihan Felix há algum tempo atrás).
Parece-nos que Oriol Paulo segue um caminho seguro de boas produções no cinema espanhol atual. Além dos já citados, é dele também um outro bom thriller, O Corpo, que trabalha com o caso de um corpo que desaparece do necrotério. Em todos eles há a mão precisa de Oriol de não deixar a narrativa sem muitas pontas soltas ou perguntas sem respostas. Nada é jogado na cena sem algum propósito, tudo tem um motivo. Se lembrarmos de outras produções do cinema e da TV espanholas (e é bom destacar que isso inclui também a Catalunha, com toda a sua cultura e histórias particulares), como as séries recentes La casa de papel e Si no t'hagués conegut, não só Oriol, mas outros diretores também poderão, em um futuro próximo, ombrear-se aos grandes diretores espanhóis como Pedro Almodóvar e Alejandro Amenábar. Isso sem ir muito para trás…
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Para quem conhece Agnès Varda, recomendo com carinho o último trabalho dela, o filme do título, seu mais recente e, efetivamente, o último filme de uma longa carreira. Varda morreu no fim do corrente ano (2019), aos 90 anos de idade. Sobre Varda, mais ainda com esse filme, não há como não ser pessoal, já desde o título. Recomendo, também, a quem não conhece Varda, assisti-lo, pois é uma excelente porta de entrada para a filmografia extraordinária da cineasta e diretora (54 obras), escritora (44 títulos) e produtora (12 de seus próprios filmes). Você terá a grande Agnès como guia para sua própria filmografia. Como diz Ignácio Araújo em seu comentário sobre o filme, publicado no último domingo (12 de maio) no jornal Folha de São Paulo: " [...] quando termina o filme, dá uma vontade imensa de entrar na tela e abraçar aquela senhora artista que se expõe ao mesmo tempo em que fala de sua arte. [...] (e dá vontade mesmo!). No Varda por Agnès, Varda passa sua obra em revista com carinho, afeto e um imenso amor pela sua arte, seus personagens e pela humanidade como um todo. Ela começa falando de sua arte inicial, a fotografia. Para quem não sabe, ela foi uma fotógrafa de mão cheia. Depois disso, sem seguir uma ordem cronológica rígida, vai aos poucos se revelando, ora como personagem, ora como diretora, ora como ativista política (característica esta que ela manteve até o fim de sua vida). Ela diz ser, em vários momentos de sua “exposição” pública, além de fotógrafa, ou talvez por isso mesmo, documentarista. Ao longo de sua vida, ela demonstra isso com precisão (Daguerreótipos (Daguerréotypes), de 1976; Os Renegados (Sans Toit ni Loi), de 1985; Os Catadores e Eu (Les Glaneurs et le Glaneuse)”, de 2000; Quelques Veuves de Noirmoutier, de 2006; As Praias de Agnès (Les Plages de Agnès), de 2008; Visages, Villages, de 2017. Por outro lado, ela é a própria “persona” de seus filmes, ou a mulher dentro dela. Filmes como La Pointe Courte, de 1954 – um precursor da nouvelle vague – e o criativo, para dizer o mínimo, Cléo das 5 às 7, seu segundo filme, comprovam isso. Continuou, ainda, com o As Duas Faces da Felicidade (Le Bonheur), de 1965, e As Cento e Uma Noites (Les Cent et Une Nuits), de 1995. Desde os momentos iniciais de Varda por Agnès aparece uma das principais características de Varda: o seu interesse pelo "simples", o comum, alguns até se atrevem a dizer, pelo "banal". Tudo isso pode ser condensado na capacidade de Agnès de descobrir a riqueza das pessoas e das coisas. O olhar de Varda, indescritível em palavras, pode ser visto em suas fotos ("mundanas", ou "artísticas"), em seus curtas-metragens, em seus documentários e em seus longas. Como fechar essa recomendação enfática a esse seu último filme – um verdadeiro autorretrato, ou seria melhor, um "autofilme"? – Varda de forma entusiástica se envolve no fim de sua vida tão produtiva com "experiências" de combinações variadas entre fotografia, cinema, artes plásticas e áudios variados e/ou mais pessoais. Sem nenhuma dúvida (pelo menos de minha parte) Agnès deve ter morrido aos 90 anos feliz, satisfeita com o que fez, sem tristezas, ou mágoas, com um olhar (provável, já que ela está de costas) para a imensidão do infinito. |
AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
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