Nelson Marques Cineclube Natal e ACCiRN – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte e-mail: [email protected] O filme Um Lindo Dia na Vizinhança, atualmente na grade da Netflix, tem um roteiro muito simples, mas inteligente. Com a proposta obrigatória de realizar uma entrevista para uma revista, um jornalista entediado e frustrado com as não realizações e frustrações de sua rotina de trabalho, é envolvido de tal forma com a maneira de viver desse “vizinho”, que ele mesmo se surpreende com o resultado da entrevista, ao viver por algum tempo com o seu “objeto” de trabalho. O entrevistado deverá ser Fred Rogers, responsável por um programa infantil de TV de grande audiência nos Estados Unidos da América a partir dos anos 1960. Essa transformação surpreendente pode ser acompanhada nos 107 minutos do filme de Marielle Heller, Um Lindo Dia na Vizinhança, de 2020. A apresentação inicial do filme de Marielle apontava para mais uma cinebiografia de prestígio, mas, no entanto, ao longo da história subverte o molde totalmente para melhor aproveitar seu objeto de estudo. Heller começa a enquadrar os aspectos básicos de sua história sob a estrutura do programa de TV que fez a fama de sua figura central, Fred Rogers (magistralmente encarnado por Tom Hanks). O que observamos realmente, no entanto, é a história do jornalista Tom Junod sobre Rogers (publicada originalmente no ano de 1.998 na revista Esquire como ”Can You Say... Hero?”, em novembro de 1998), modificada no filme por uma história complementar do fictício jornalista Lloyd Vogel (um bom trabalho também de Matthew Rhys) transformada, no entanto, por seus próprios problemas pessoais num momento conturbado de sua vida pessoal. Este personagem, cínico e amargurado, tenta mostrar que aquele aspecto de bondade extrema de Rogers, que permeia de forma explícita o seu programa de TV, seria uma grande mentira. No entanto, durante esse processo, Lloyd se vê envolvido pela figura quase mítica de Rogers, que ele passa a vê-lo e respeitá-lo com a “magia” natural que ele demonstra com os seus personagens e o roteiro fantasioso de seu programa de TV. O programa foi apresentado por Rogers durante 34 anos ininterruptos! Mais tarde Junod transforma em livro a sua experiência (“A beautiful day in the neighborhood”). Surpreendendo a todos é Rogers, no entanto, que até hoje é visto com carinho pelos espectadores norte-americanos mais velhos, sortudos por assistirem seu programa diário Mister Rogers’ Neighborhood em suas infâncias, quem conta ao público esta história, subvertendo em mais outro nível a perspectiva da obra baseada em fatos. Diversas vinhetas pontuam o longa-metragem e seguem o formato do programa televisivo, cruzando de forma criativa com a história sóbria do miolo da história de Rogers. Ao longo do filme, há justaposições cada vez mais frequentes dos elementos oníricos com outros mais realistas. Há várias camadas de alucinações e sonhos, o que permite um livre trânsito dado pelo roteiro do filme entre seriedade, sisudez, alegria, tristeza e veracidade. Isso tudo se deve à elaboração de um roteiro quase perfeito de Noah Harpster e Micah Fitzerman-Blue “fazendo” a figura de Fred Rogers transitar da cafonice, em alguns momentos, a uma sinceridade espontânea na maior parte do tempo, sem que tenhamos um estranhamento por isso. Através desse processo, Lloyd Vogel, e nós também, somos conquistados. “Sem” defesas (ou preconceitos), vemos que os dramas de Lloyd e, talvez os nossos também, são os de todos e o que significam não são nada mais do que as questões comuns de todos. O tom cínico, do início da entrevista, é substituído agora por uma real transformação interna de Vogel. Ou seja, o seu mundo deverá ser visto (ou revisto) com novos olhos, os olhos do “mundo” fantasioso de Rogers e as suas miniaturas e bonecos. A condução de Heller nos diálogos valoriza o tempo de reação e reflexão dos atores, mais pensando no impacto de um sobre o outro em suas conversas – isso ocorre mesmo em momentos de silêncio, como na magnífica cena do fantoche no estúdio, ou daquele longo minuto de silêncio (em tempo real!), na lanchonete. Uma decisão que carrega uma carga de emoção muito grande e valoriza sobremaneira os silêncios reflexivos de ambos, e de nós mesmos. Creio que o uso da filmagem em tempo real, feito por Heller, onde o tempo que decorre na tela é o tempo do relógio durante a cena, é sempre impactante. Veja como outros diretores e filmes fizeram uso também dessa estratégia, ou recurso, para conquistar o espectador a seu favor. Há bons filmes em que se pode verificar isso: Limite de Segurança (Fail Safe), Sidney Lumet (1964), Tempo Esgotado (Nick of Time), John Badham (1995), Corra Lola, Corra Lola (Lola Rennt), Tom Tykwer (1998), Amargo Reencontro (Tape), Richard Linklater (2001) e o clássico dos clássicos, Matar ou Morrer (High Noon), Fred Zinnemann (1952).
Como conclusão, podemos dizer que o bom roteiro de Noah e Micah e a boa direção de Heller, junto com as interpretações seguras de Hanks e Rhys, fazem um bom filme, onde as boas ações, as boas conversas ainda importam, desde que haja sinceridade e honestidade no processo. Creio que todos nós sairemos, depois de assistir ao filme, mais comovidos, mais reflexivos e, sem dúvida, veremos com outros olhos os nossos “vizinhos”... Quaisquer que sejam eles.
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AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
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