Nelson Marques Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) e Associação Cultural Cineclube Natal e-mail: [email protected] Se não é fácil ser mulher em pleno século XXI em razão das características sociais de uma cultura e de uma sociedade fundada em balizas patriarcais e machistas, imaginem isso no fim do século 19 e primeiras décadas do século XX... Pois, como ela disse para si mesmo, em algum momento de sua vida: … My youth, my lack of experience, my sex all conspired against me... Alice Guy-Blaché nasceu no dia primeiro de julho de 1873 na cidade de Saint-Mandé, na França, a sudeste da área de Paris, no departamento de Vale do Marne. Seu nome de batismo foi Alice Ida Antoinette Guy e morreu aos 94 anos de idade, no dia 24 de março de 1968, na cidade de Wayne, Nova Jersey, nos Estados Unidos, completamente apagada da história do cinema. Ela viveu parte de sua vida em Santiago, no Chile, pois seu pai, Emile Guy, era dono de uma rede de livrarias e de uma editora naquele país. Com seis anos de idade ela foi mandada para a França para estudar no Colégio do Sagrado Coração, na fronteira com a Suíça, junto de seus irmãos. Após a morte de seu pai, Alice procurou formação na área de estenografia e datilografia, campos novos na época, para poder sustentar à mãe e a si mesma. Ela conseguiu seu primeiro emprego em uma fábrica de verniz. Um ano depois, em 1894, começou a trabalhar como secretaria, com Léon Gaumont, na empresa de fotografia Comptoir Général de la Photographie. A empresa faliu logo depois, mas Gaumont, visionário como ninguém, comprou o espólio e começou a sua própria empresa, que logo se tornaria pioneira, e futuramente potência, na indústria de cinema da França. Alice decidiu continuar com Gaumont em sua empresa nova, a Gaumont Film Company, decisão que mudaria a sua vida para sempre e que a levaria a se tornar pioneira, ela também, numa série de novos campos que surgiam com o aparecimento do cinema. Saindo de suas funções como secretária, Alice começou a se interessar em ver como era o trabalho com filmagens, aprendendo na prática com clientes e funcionários da Gaumont. Em razão disso, ela também conheceria Georges Demenÿ e os irmãos Auguste e Louis Lumière. Em 22 de março de 1895, Alice e Gaumont foram à exibição surpresa dos Lumière, onde eles demonstraram o uso de um projetor de filmes, um desafio que tanto Gaumont, como Thomas Edison e os Lumière vinham tentando solucionar. Eles exibiram um dos primeiros filmes já feitos, La Sortie de l'usine Lumière à Lyon, que consistia em uma cena mostrando trabalhadores na fábrica dos irmãos, em Lion. Tanto Alice, quanto Méliés, que também estava nessa sessão especial, se encantaram com o aparelho e perceberam o potencial dos filmes. O cinema não deveria ser visto apenas como registro de cenas que estavam acontecendo diante das lentes. O cinema poderia ser muito mais criativo, e não só um “teatro filmado”! Alice Guy acreditava que filmagens não deveriam servir apenas para propósitos científicos ou com o objetivo de vender câmeras, mas que era possível incorporar elementos ficcionais em filmes. Ela perguntou então a Gaumont se teria a permissão de fazer seu próprio filme em seu tempo livre e ele permitiu. Não há registros de quando ele foi feito. Esse “sim” mudará sua vida para sempre e a transformará numa das pioneiras do cinema francês e do mundo. Outra mudança em sua vida foi o casamento com Herbert Blaché em 1907, que seria o encarregado de produção da Gaumont nos Estados Unidos, e que trabalhava também como operador de câmara. Três anos depois eles se mudaram para os Estados Unidos e lá eles decidiram criar a sua própria empresa, em 1910, juntamente com Georgie A. Magie. Surge, então, a Solax Company, o maior estúdio de cinema antes de Hollywood, sendo Alice a primeira mulher a dirigir um estúdio e construir estúdios para filmar as suas obras. Novas ações pioneiras, portanto. A Solax Company, estabelecida no Queens, em Nova York se dedica a trabalhar em muitas produções. Herbert era diretor de produção e fotografia, enquanto Alice era diretora de muitos dos lançamentos da empresa. Em dois anos, eles prosperaram tanto que conseguiram investir mais de cem mil dólares em um novo e mais moderno estúdio, em Fort Lee, Nova Jersey. Vários anos depois, Alice e Herbert se divorciaram e com o declínio na indústria cinematográfica na costa leste, que migrava para a costa oeste, estabelecendo as bases da indústria de Hollywood, a parceria entre os dois acabou. Desde a época do nascimento de seus filhos, em 1908 e 1910, Alice havia deixado a direção da empresa para Herbert, dedicando-se exclusivamente à produção dos seus filmes, roteiro e direção, numa média de três por semana. O final do desentendimento empresarial e pessoal entre eles e o divórcio acontecem em 1920. Herbert deixou a esposa e os filhos para tentar carreira em Hollywood. Em 1922, Alice e Herbert estavam oficialmente divorciados, obrigando-a a leiloar seu estúdio devido à falência. Alice Guy volta, então, para a França, mas não consegue retomar sua carreira de diretora, mesmo tendo tentado um novo início nos Estados Unidos, em 1927. Alice Guy, com a decisão tomada, junto com Georges Méliès, foi pioneira na história do cinema no uso das câmaras recém-desenvolvidas pelos Irmãos Lumière para contar histórias, não só filmar cenas. Os dois foram pioneiros, também em criar técnicas e narrativas que somente seriam possíveis com esses aparelhos. Encantada com o aparelho Alice Guy começou a experimentar e experimentar, em todos os sentidos, além de simplesmente filmar. Fez filmes com dupla exposição, atrasos e avanços na velocidade, tudo para conseguir efeitos interessantes para narrar suas histórias. Ela ainda seria a primeira a usar cores e sons em seus filmes. Ela foi autora, cineasta, produtora e atriz, entre os anos 1896 e 1922, de quase mil obras, sendo vinte e dois deles longa-metragens. Restam atualmente cerca de 450 delas (454, efetivamente). Seu primeiro filme, um curta-metragem, baseado num conto popular, foi A Fada dos Repolhos (La Fée aux choux), realizado em 1896, com apenas 53 segundos, com a atriz Yvonne Seraud. Seu último filme, Tarnished Reputations, com 50 minutos, foi realizado em 1920, junto com o seu divórcio, mas ainda realizado com a colaboração de Herbert Blaché, e de Leonce Perret, autor também do roteiro. Trabalharam no filme, Dolores Cassinelli e Alan Roscoe. Durante a produção deste filme, Alice quase morreu devido ao surto de gripe. Alice foi uma pioneira no cinema francês e mundial também. Ela é comumente reverenciada como a primeira cineasta e roteirista de filmes ficcionais, vista como uma visionária no uso do cronofone de Gaumont para a sincronização de som, colorização, elenco interracial e uso de efeitos especiais. Como dissemos, Alice dirigiu mais de mil filmes durante seus vinte anos de carreira, tendo criado e administrado seu próprio estúdio, numa época em que pouquíssimas mulheres tinham alguma expressão social. De 1896 a 1906, ela foi chefe de produção do estúdio de Gaumont e provavelmente a única mulher diretora de cinema nesse período. Seus primeiros filmes tinham temas e características semelhantes aos dos colegas Lumière e Méliès. Ela fazia filmes de viagens, de shows de dança, às vezes combinando os dois temas, tendo filmado na Espanha os filmes Le Boléro Cosmopolite e Tango (2 min), ambos de 1905. Em 1906, ela filmou The Life of Christ (La vie du Christ, 33 min), uma grande produção para a época, com trezentos figurantes! Ela foi pioneira no uso de gravações de áudio junto das imagens na tela, utilizando o cronofone de Gaumont. Também aplicou os primeiros efeitos especiais, usando dupla exposição da película, técnicas de máscara e inclusive rodando o filme ao contrário. Recursos criativos e originais para a época. Alice Guy faleceu em 1968, aos 94 anos, enquanto morava em um asilo, depois de ter retornado em 1994 para a casa de sua filha, nos Estados Unidos. Ela morreu completamente apagada e esquecida dos homens, mesmo com uma contribuição tão importante para o cinema. Ainda tentou ser lembrada... Em vão, mesmo escrevendo sua biografia no final dos anos 1940. Mesmo a publicando em francês em 1976. Ainda foi traduzida para o inglês em 1986, com a ajuda de sua filha, Simone, de sua cunhada, Roberta Blaché, e contando ainda com o auxílio do escritor de cinema Anthony Slide. Ela também se preocupava com a inexplicável ausência de seu nome nos registros históricos da indústria do cinema. Esteve em contato constante com colegas e historiadores de cinema para corrigir fatos da indústria e de sua carreira. Ela criou listas com seus filmes na esperança de ser devidamente creditada por eles. Tudo, aparentemente, ainda em vão. Mais recentemente, escritores, historiadores e cineastas voltam a dar-lhe o lugar que lhe é devido e que ela merece, mesmo sendo mulher, na visão de muitos... Alguns autores escreveram artigos e livros sobre ela: Alison McMahan (2003), Alice Guy Blaché: Lost Visionary of the Cinema, London: Bloomsbury Academic; Alison McMahan e Joan Simon, eds. (2006). Madame Blaché in America, Yale University Press; Roberta e Simone Blaché (1996), The Memoirs of Alice Guy Blaché (The Scarecrow Filmmakers Series), Methuchen, New Jersey: Scarecrow Press; Joan Simon, ed. (2009) Alice Guy Blaché: Cinema Pioneer, Yale University Press; Melody Bridges, ed. (2016) Silent Women: Pioneers of Cinema, Supernova Books; Mark Garret Cooper (2010), Universal women: Filmmaking and institutional change in early Hollywood, University of Illinois Press. Outros, como colegas de profissão, estão resgatando a sua memória e a sua importância para o cinema, através de filmes e documentários: Be Natural: The untold story of Alice Guy-Blaché, Pamela B. Green, 2018, 1h 43´; Early women filmakers: A international anthology, 2017, Box com 6 DVD´s no formato Blu-Ray; Le jardin oublié: La vie et l´óeuvre d´Alice Guy-Blaché, Marquise Lepage, 1996, 53 min; Alice Guy-Blaché, Katja Raganelli, 1997, 60 min; Women who made the movies, Wheeler Winston Dixon e Gwendolyn Audrey Foster, 1992, vídeo, 55 min. Até mesmo projetos de restauro de alguns de seus filmes estão sendo realizados, como em 2010 pelo serviço de arquivo da Academia de Artes Dramáticas (o curta A Garota na Poltrona, The Girl in the Arm-Chair, 1912, com 10 min (“Preserved Projects”, http://www.oscars.org/academy-film-archive/preserved-projects?title=&filmaker=Blache&category=All&collection=All. Academy Film Archive. Consulta em 20 de agosto de 2021). Em 2011, a Forte Lee Film Comission entrou com uma petição na Directors Guild of America para aceitar Alice como membro póstumo. Aqui mesmo no Brasil tivemos uma homenagem a ela. Ela foi um dos destaques, da 7ª. edição do Olhar de Cinema Festival Internacional de Curitiba, em 2018, que apresentou na Mostra Clássicos, um programa de oito filmes dirigidos por Alice Guy. Os filmes eram todos recém-restaurados e foram providenciados pela Biblioteca do Congresso, nos EUA. Os filmes foram realizados entre os anos 1911 e 1913, durante a sua fase americana. Pelo menos a sua memória está sendo homenageada pela entrega do prêmio anual ”Alice Award”, oferecido pela Fort Lee Film Comission (lembrando o único marco histórico de Alice Guy nos Estados Unidos, o estúdio da Solax Company, em Nova Jersey, Fortleefilm.org, http://www.fortleefilm.org/, consulta em 20 de agosto de 2021), e o prêmio “Women in Film-Alice Guy Blaché Award“ do Golden Door Film Festival (Mohindra Ruptam, “53 films to be screened at Golden Door International Film Festival”, The Jersey Journal), http://www.nj.com/hudson/index.ssf/2012/10/53_films_to_be_screened_at_gol.html. Consulta em 20 de agosto de 2021. Filmografia Alice Guy dirigiu 454 filmes, entre curta- e longa-metragem, e documentários, todos realizados durante 20 anos de carreira. Foi produtora de 32, roteirista de 18 e atuou em 4 filmes. Em 1896 realizou 7 curtas, aumentando paulatinamente a sua produção nos anos seguintes: 17 (em 1897 e 1898), 20 (em 1899), 60 (em 1900, seu ano mais produtivo), 14 (em 1901), 27 (em 1902 e 1903), 47 (em 1904), 56 (em 1905), 43 (em 1906), 12 (em 1907), 12 (entre 1908 e 1910, que foram os anos em que ela teve os dois filhos), 22 (em 1911), 37 (em 1912), diminuindo a sua produção anual nos anos seguintes, 14 (1913), 6 e 5 (em 1914 e 1915), 2 (em 1916), 6 (em 1917), 1 (em 1918) e 1 (em 1920), quando realizou seu último filme. O primeiro filme foi o curta de 53 segundos, em 1906, La Fée aux choux (A Fada do Repolho). O último, em 1920, Tarnished Reputations, com 50 min de duração, numa direção tripartite de Herbert Blaché, Leonce Perret e Alice Guy. Ao longo de sua vida Alice passou por várias fases em sua produção filmográfica. Desde as belas vistas e experimentos visuais, de montagem e narrativos, tendo feito o primeiro filme narrativo de ficção da história do cinema, até a realização de longa-metragens. São da fase de seu trabalho na Gaumont, por exemplo, os filmes de peças de dança, muitas vezes coloridos à mão, como os vários Danse serpentine (de 1897 a 1902), que em si constituiu um gênero, utilizado por outros cineastas da época, como Lumiére, Edison e Meliés, Danse Fleur de Lotus (1897, 1min), Ballet Libella (1897, 1´), Danse du Papillon (1900) e La Danse du Ventre (1900). Todos estes constituindo outro gênero, chamado de “butterfly dancers”. Dessa fase também são os filmes cômicos, coreografados ou com truques de montagem do tipo “some e aparece”, como The Burglars (1898) e The Landlady (1900). Suas vistas lumerianas, ou registros de realidade, alcançam também uma sensibilidade muito específica, como o filme Baignad dans le torrent (Bathing in a Stream, 1897, 1´). Entre seus vários experimentos, estão Avenue de l’Opéra (1900, 1´), em que há uma inversão do filme e faz com que todos se movimentem de trás para frente. Também são surpreendentes seus experimentos em busca do cinema sonoro como em Dranem Performs ‘Five O’Clock Tea’ (1905, 3´) e o Félix Mayol Performs ‘Indiscreet Questions’ (1906, 2´). Neste, Alice opera com um sistema de sincronização de som e imagens, o “Chronophone” de tecnologia avançada para a época. A partir de 1906, quando de volta a Paris, a cineasta começa a rodar muitos filmes com o tempo de duração maior com narrativas mais sofisticadas. A sua limitação era apenas a duração de um carretel com cerca de 13 minutos. Exemplos desta fase são Heroine (Une héroïne de quatre ans, 1907, 6´) e Les Résultats du Féminisme (Os Resultados do Feminismo, 1906, 7 min), uma crítica ácida e bem humorada aos papéis sociais de homens e mulheres, em que ela imagina um mundo com as tarefas invertidas, homens cuidando da casa e das crianças enquanto as mulheres ficam bebendo e fumando nos bares. Talvez o seu filme mais ambicioso desta fase seja La vie du Christ (A Vida de Cristo, 1906), um filme de 33 minutos, feito de pequenas cenas, com um grande orçamento para a época e que contava com cerca de 300 figurantes! Na sua fase de trabalho na Solax Company uma série de melodramas críticos ao sistema social, como A Man’s a Man (1912), The Roads That Lead Home (1913, 28´), The Girl in the Armchair (A Garota na Poltrona, 1912, 10´, restaurado recentemente) e Making an American Citizen (Americanização, 1912, 16´), filmes de ação, como The Detective and His Dog (ou The Detective´s Dog, 1912) e o filme multi-carretéis The Pit and the Pendulum (1913), com 30 minutos de duração. Ouve também a realização de muitas comédias como A Comedy of Errors (1912, 11´), Canned Harmony (Harmonia Enlatada, 1912, 12 min), His Double (1912, 31´), e Burstop Holmes’ Murder Case (1913, 13 min). Há também o filme In the Year 2000 (1912), em que, novamente, os papéis de gênero masculino e feminino são completamente invertidos, fazendo uma alusão ao seu filme do período da Gaumont francesa Le Résultats du féminisme (1906). A partir de 1912, começaram a produzir filmes mais longos, utilizando o comprimento de um carretel ao limite e até fazendo algumas produções de dois carretéis. Um marco da produtora, Dick Whittington and His Cat (1913), teve o comprimento de três rolos (45 minutos!), e filmagens mais elaboradas. Foi o projeto mais ambicioso do estúdio e também de Alice Guy, e, provavelmente, a obra-prima de seu período de Solax. Apesar de Guy não ser exatamente uma militante das questões de gênero, e da realizadora ter feitos filmes de todo o tipo, de westerns a comédias de costume, muitos de seus filmes (talvez a maior parte), traz personagens femininas bem trabalhadas, de todas as faixas etárias (de crianças a idosas), protagonistas em relação ao seu destino, cômicas e independentes, além de abordarem com sensibilidade temas do universo feminino. Alguns mais sutis como os que trazem personagens femininas infantis como protagonistas da trama e agentes da narrativa, como em Heroine (1907) e Falling Leaves (O Cair das Folhas, 1912, 12´), outros mais enfáticos como Les Résultats du Féminisme (1906) e In The Year 2000 (1912). Os temas sociais também são importantes para Guy, como em Making an American Citizen (1911), que trata da questão dos imigrantes na América. Em Pierrette’s Escapades (Le Départ d´Arlequin et de Pierrette, 1900, 2 min), Arlequim, Pierrô e Colombina interagem em uma cena de intriga amorosa, coreografada, em que os dois personagens masculinos são interpretados por mulheres e acabam se beijando ao final da película, lançando mão de questões sobre comportamento, sexualidade e gênero (em 1900!).
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Nelson Marques Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) e Associação Cultural Cineclube Natal e-mail: [email protected] Culpa foi o concorrente da Dinamarca ao Oscar de Filme Estrangeiro de 2019 (ele estava classificado entre os 9 que disputariam as 5 vagas finais). Nem ganhou e nem foi para as 5 vagas finais. O que foi uma pena, pois o filme é muito criativo ao contar uma história que poderia ser enfadonha, mas se transforma em um suspense convincente. O longa-metragem se passa todo em único ambiente, uma central de atendimento telefônico de emergência da polícia. A premissa do filme é relativamente simples. O policial Asger Holm (Jakob Cedergren, de Esquadrão de Elite), após aparentemente cometer uma infração grave, é forçado a trabalhar longe das ruas, recebendo ligações telefônicas e repassando aos setores responsáveis. A sequência inicial já deixa clara a frustração de Asger de atuar em um ambiente fechado, longe da ação com a qual ele se identifica mais. Isso reflete bem o quanto pessoas que trabalham com situações de emergência acabam sendo (ou se tornando) frígidas e indiferentes, pois essas circunstâncias costumam exigir muito sangue frio por parte dos profissionais – sem falar na já tradicional fleuma dos países nórdicos, o que acentua ainda mais essas características. O que desencadeia toda a sequência de fatos que dá vida ao filme é a ligação da personagem Iben, para relatar o seu sequestro pelo ex-marido Michael. Asger, então, ignora o fim do seu turno, assim como suas atribuições limitadas, e passa a perseguir sequestrador e vítima, buscando uma resolução para o caso. Até aí nada de novo na história, mas... o que poderia ser apenas mais uma obra de um policial solitário fazendo justiça com as próprias mãos transforma-se num suspense de qualidade inquestionável, abusando da simplicidade e convidando o espectador a desvendar o mistério junto do protagonista. Entenda que toda a narrativa contada até agora se passa unicamente no setor de chamadas da polícia onde Asger trabalha. Mais especificamente, em dois únicos cômodos: um, onde inicialmente ficam os demais atendentes, e outro mais reservado. A câmera não sai de perto do personagem principal em nenhum dos 85 minutos de duração (sim, é um filme relativamente curto), ficando para nós a missão de construir todo o restante da trama em nossa cabeça. A única coisa que o diretor nos fornece são as ligações de Asger, seja para Iben, Michael, a filha do casal Mathilde, seu amigo Rashid, as centrais de polícia das diferentes regiões da Dinamarca… nada nos é mostrado além do que o protagonista também vai descobrindo no transcorrer da história. Ao contrário de outros filmes policiais, há uma ação contida, já que tudo se desenrola a partir das ligações telefônicas. O filme é basicamente expositivo, mas Gustav Möller em seu primeiro longa-metragem faz tudo ficar ajustado. Isso talvez por ser o autor também do roteiro. Essa decisão, embora corajosa, não faria de Culpa um grande filme por si só. De nada adianta ser inventivo na forma de contar algo se o objeto utilizado não for de qualidade. Felizmente, o roteiro – escrito por Möller em parceria com Emil Nygaard Albertsen – é eficiente em conceber os momentos de tensão no decorrer da trama (dando ao menos alguns espaços para que recobremos a respiração), além de explicar gradativamente o motivo de Asger estar afastado de suas funções. Convenhamos que por mais entrelaçado e cheio de reviravoltas que fosse o sequestro, dificilmente ele seria suficiente para sustentar todo o tempo de tela da produção. Como o diretor trabalha com planos fechados, a sensação de claustrofobia do personagem é transferida para o espectador. O diretor usa e abusa do recurso de nos fechar no mundo daquele personagem. Aliás, além do texto, a montagem é outro aspecto que merece bastante destaque. Imagine o quão monótono seria um longa-metragem onde tudo o que vemos se resume a um homem enquadrado da cintura para cima com um fone na cabeça. Ainda bem que o ritmo está no ponto certo, aliado a cortes dinâmicos e movimentos de câmera precisos, além de vários closes em mãos trêmulas e olhares apreensivos, tudo pensado para fazer a estrela brilhar. E que estrela! Jakob Cedergren está simplesmente fenomenal em sua atuação, indo de uma pedra de gelo a um braseiro em chamas em uma crescente que corresponde perfeitamente aos nossos sentimentos ao ver o filme. Facilmente nos identificamos com o protagonista porque ele age exatamente como um humano comum o faria (ou assim deveria): tendo empatia por quem aparenta precisar de socorro. E a insatisfação com a ineficiência das instituições, atrelada ao sentimento de incapacidade de poder ajudar alguém, acabam ocasionando todas as reações do policial – e as nossas também. O próprio design de som é um show à parte, algo fundamental para que possamos montar as situações ocorridas do outro lado da linha telefônica do protagonista. A obra funciona bem como suspense, mas brilha mesmo como um exercício de cinema, transformando o público em participantes ativos da história. Quanto ao Oscar, a sua premiação acabou ficando difícil tanto por sua temática, quanto pela condução, frente aos filmes apresentados numa temporada de outros bons filmes como Cafarnaum, de Nadine Labaki, Guerra Fria, de Pavel Pawikowski, Nunca Deixe de Lembrar, de Florian Henckel von Donnersmarck, Assunto de Família, de Hirokazu Kore-eda e Roma, de Alfonso Cuarón, que acabou arrebatando o Oscar 2019 de Melhor Filme em Língua Estrangeira.
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AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
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