Nelson Marques Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) e Associação Cultural Cineclube Natal e-mail: [email protected] O diretor Terry Gilliam leu Dom Quixote, de Cervantes, em 1989, e se interessou em filmá-lo. No entanto, até antes do lançamento oficial do filme, ocorrido apenas em maio de 2018 no festival de Cannes, sendo aplaudido de pé por vários minutos, muita água passou pelo moinho... Pior, muita coisa ruim aconteceu: muitos inícios e reinícios, cancelamentos e retomadas, inúmeros problemas de produção. Finalmente, somente em 2019, o “amaldiçoado” projeto de Terry Gilliam entrou, enfim, em circuito comercial. O sonho antigo de Terry Gilliam estava finalmente realizado. Essa epopeia parece ser a maldição de Dom Quixote, pois Orson Welles, em 1955, iniciou saga semelhante. O projeto de Welles durou mais de 20 anos, e mesmo assim, não conseguiu terminá-lo. Após mais de dez anos de conturbadas filmagens, seu projeto permaneceu inacabado. Aqui os personagens de Don Quixote e Sancho viajam pela Espanha de 1960, revelando as pessoas e seus costumes, destacando a clausura e corridas de touros que tanto apaixonava Orson Welles, sem deixar de lado tradições populares como festas de mouros e cristãos, ou procissões religiosas. A excepcional interpretação de Francisco Reiguera e Akim Tamiroff, como Dom Quixote e Sancho Pancho, escolhidos pessoalmente por Welles, assim como a aparição do próprio Welles em algumas cenas, tornam este filme imprescindível. Os dois atores principais morreram antes do término das filmagens (Reiguera em 1969 e Tamiroff em 1972). Com relação ao projeto de Welles há pelo menos dois filmes que atendem pelo nome de Dom Quixote de Orson Welles. O primeiro, esse produzido entre 1957 e 1972, que não chegou a ser montado. O segundo Dom Quixote foi lançado em 1992, sete anos após a morte do diretor norte-americano, e hoje está disponível no Youtube e em Blu-Ray e DVD no Brasil. Ambos os filmes, o inacabado e o de 1992 (este, às vezes, chamado de Don Quixote de Welles (1992) de Jess Franco - sim, o diretor espanhol Jésus Franco Manera conhecido pela sua mistura de horror e erotismo, “horróticos”, e pornô também), autorizado pela herdeira, Oja Kodar e o governo espanhol, revelam muito sobre a trajetória de Welles, um dos mais brilhantes e problemáticos artistas do modernismo norte-americano, que dirigiu sua obra-prima, Cidadão Kane, aos 25 anos. Voltando ao filme de Gilliam, e para quem quiser saber mais sobre essa saga na produção recomendo o documentário Perdido em La Mancha (2002), com roteiro e direção de Louis Pepe e Keith Fulton, onde todos os dissabores possíveis que podemos imaginar para uma produção cinematográfica, de desastres naturais a doenças dos protagonistas, aconteceram. Mas este é apenas um capítulo da saga quixotesca do próprio Gilliam. Em essência, o roteiro segue a base da produção iniciada em 1998, inspirado em Um Ianque Na Corte Do Rei Artur, de Mark Twain, e que Gilliam escreveu ao lado de Tony Grisoni. Na trama, Toby é um cínico publicitário considerado um gênio em sua área, mas que se vê atacado por uma crise de criatividade. Ele está filmando um comercial na Espanha, onde já havia filmado muitos anos antes, fazendo um projeto para a Universidade. O nome desse seu projeto da juventude? O Homem Que Matou Dom Quixote. Já nos primeiros momentos o diretor usa diversos estilos da música tradicional espanhola, para guiar sequências marcantes e também o que trazem de consequência para os personagens, especialmente em momentos de teor cômico (a essência do filme) e romântico.
Para Terry Gilliam, Quixote não foi apenas o “filme dos seus sonhos”, mas também uma maneira de experimentar coisas novas como diretor. Desta vez, estamos diante de seu primeiro filme rodado em digital e de seu primeiro filme capturado por lentes anamórficas, uma empreitada visual da qual o cineasta fez um excelente uso, fortalecendo a interação de personagens ao mesmo tempo contemporâneos e que nos remetem aos romances de cavalaria, mais os grandiosos cenários das Ilhas Canárias, Castilla-La Mancha e Navarra, em Espanha, e do Convento de Cristo, em Tomar, Portugal. Envolvido no projeto desde a versão de 98, o fotógrafo italiano Nicola Pecorini nos mergulha em Universos fantasiosos dominados pelas mais diversas paletas de cores e presença de luz, espaços que ora abraçam a realidade, ora enganam público e os personagens diante de sua característica alucinatória. E coroando essa pintura em luz temos a direção de arte e os figurinos, que se destacam especialmente nas cenas dentro do “castelo”, onde as grandes provações de Dom Quixote acontecem. Falando de Terry, o espectador precisa entender que não se trata de um filme comum. Estamos falando de Terry Gilliam. A proposital loucura e a liberdade criativa do diretor seguem em alta e nos traz não uma adaptação fiel do famoso livro de Miguel de Cervantes, mas uma leitura que, sem dúvida nenhuma, captura a alma do livro. Na ficha técnica temos ainda: título original, The Man Who Killed Don Quixote, produção de 2018 da Espanha, Bélgica, França, Portugal e Reino Unido, com 132 min e roteiro de Terry Gilliam e Tony Grisoni, Elenco: Adam Driver, Jonathan Pryce, Stellan Skarsgård, Olga Kurylenko, Joana Ribeiro, Óscar Jaenada, Jason Watkins, Sergi López, Jordi Mollà, Diogo Andrade, Eva Basteiro-Bertoli, Paloma Bloyd, Jorge Calvo, Jimmy Castro, Maria d’Aires.
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Nelson Marques Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) e Associação Cultural Cineclube Natal e-mail: [email protected] O cinema vive de ideias originais, adaptações e inspirações naqueles filmes que já deram certo. Oxigênio, nova ficção científica da Netflix, utiliza elementos vistos diversas vezes em Hollywood: claustrofobia, pistas sobre o passado e a busca pela própria identidade. No entanto o filme criativo dirigido por Alexandre Aja (Viagem Maldita, 2006 e Predadores Assassinos, 2019), com um bom roteiro da novata Christie LeBlanc, e a excelente atuação de Mélanie Laurent, o tornam um ponto fora da curva. A trama conta a história de Elisabeth Hansen (Laurent), que acorda envolta em uma espécie de casulo em uma câmara criogênica. Ela retoma a consciência com dificuldade para lembrar o seu passado, sem entender como funciona a cápsula que se encontra trancada e ainda precisa correr contra o tempo para viver – um monitor apresenta um limite de 35% de oxigênio disponível. A sensação de claustrofobia e o desespero deixam-na confusa, sem saber o que é realidade e o que é uma memória falsa. Com a ajuda de uma inteligência artificial chamada M.I.L.O. (um ótimo trabalho de voz de Mathieu Amalric, de O Escafandro e a Borboleta, 2007 e O Grande Hotel Budapeste, 2014), lembrando outros trabalhos similares de qualidade, como Scarlett Johansson em Ela, 2013. Há um tom de perigo eminente na inteligência artificial, assim como um ar de segundas intenções. Tudo isso também é bem complementado pelo visual adotado pelo designer de produção Jean Rabasse. Ele acerta em cheio na criação dessa atmosfera dúbia. A proposta do filme é bem parecida com Enterrado Vivo, longa-metragem de 2010, dirigido por Rodrigo Cortés, e protagonizado por Ryan Reynolds. Ambos utilizam ligações telefônicas com autoridades policiais para dar andamento às cenas. A diferença é que, enquanto o diretor Cortés brigava para conseguir uma boa iluminação para o caixão completamente escuro, Alexandre Aja conta com a luz artificial do monitoramento da paciente, com muitas luzes, telas e leds. O diretor consegue desenvolver uma movimentação de câmera bem interessante, ora flutuando pela câmara em momentos de calmaria, ora focando no rosto da protagonista para demonstrar suas reações para um novo problema. Ao demonstrar logo de início o tamanho e as limitações da cápsula, Aja pode se preocupar em desenvolver o clima de tensão e dar espaço para Mélanie Laurent brilhar (e o faz de maneira extremamente competente e dramática). Como um filme de uma única atriz ela é o centro das atenções durante o filme inteiro e conta com grande ajuda da inteligência artificial para um ponto de referência para conversar e interagir. Por meio da sua atuação e do clima criado pela trama, é instalado um alto nível de imersão, a cada respiração mais profunda da protagonista, é criada uma tensão em relação à porcentagem do oxigênio. Ela fica deitada o tempo todo e passa por períodos de absoluto desespero, crises de ansiedade e, raramente, controle da situação. O filme conta com diversos pontos de virada e um bom ritmo. O que começa como uma premissa minimalista vai se desenvolvendo para algo gigantesco. Trata-se de um ótimo suspense, com uma excelente argumentação e atuação. A trama acaba incluindo ecos sobre a pandemia, pois é difícil não ligar os pontos sobre a falta de oxigênio da personagem com a realidade de muitos hospitais no Brasil e no mundo. Em alguns flashbacks, alguns personagens utilizam máscaras, levando a entender também que o filme foi gravado durante a pandemia. Oxigênio conta com cenário reduzido e, quando os flashbacks exigem um maior número de pessoas em cena, as vemos com máscaras ou proteções típicas da pandemia do novo coronavírus. E a ideia desse ambiente controlado, que fica restrito quase a apenas um único cenário, foi uma boa sacada do cineasta Alexandre Aja. Oxigênio é um ótimo exercício em criar tensão sufocante (literalmente) com poucos recursos, que cresce ainda mais quando espelha com honestidade a descrença de quem já perdeu as esperanças no mundo atual, mas que isso nem por isso deixa de lutar pelo amanhã.
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AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
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