Nelson Marques Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) e Associação Cultural Cineclube Natal e-mail: [email protected] O filme Um Fim de Semana em Paris / Le Week-End pode enganar o espectador. Aparece como uma comedia romântica e leve, com situações bem engraçadas, piadas deliciosas, que surgem dos diálogos de um casal inglês que vão a Paris para um fim-de-semana, 30 anos depois de passar ali a lua de mel. Aos poucos, o que aparentemente era uma simples comédia despretensiosa, transforma-se aos poucos numa comédia dramática e, no frigir dos ovos, muito triste. O filme é de 2013, dirigido por Roger Michell, numa coprodução Inglaterra-França, onde o casal Nick e Meg Burrows – interpretado por Jim Broadbent e Lindsay Duncan com maestria – mora em Birmingham, na Inglaterra, cidade pela qual não nutrem qualquer admiração. Ele é professor de Filosofia, ela, de Biologia. Como todo casal de velhos (os dois estão aí na faixa dos 65 anos mais ou menos), têm um monte de manias, idiossincrasias e implicâncias mútuas. Eles vivem um momento um tanto delicado. Nick ainda não contou para Meg, mas seus superiores da universidade querem que ele se aposente. Houve uma queixa de uma aluna negra contra ele, depois que ele disse a ela que se ela usasse parte do tempo que dedicava a cuidar dos cabelos para estudar, teria um excelente aproveitamento. Além disso, eles estão com aquela “síndrome do ninho vazio”: os filhos saíram de casa para tocar suas próprias vidas. Um dos filhos é do tipo que só dá preocupação e nenhuma satisfação: Nick vai descrevê-lo como um sujeito de quase 30 anos que passa a vida no sofá diante da TV fumando maconha. Os pais compraram uma casa para ele, mas ele não ficou satisfeito, quer voltar a viver com os pais – algo que Meg definitivamente não aceita. Meg é muitíssimo mais despachada, decidida, mais ágil do que o marido. O que não é nada anormal. A relação entre os dois é um tanto estranha. Amam-se – disso não há dúvida. Mas Nick ama Meg muito mais do que ela o ama nos dias de hoje, pelo menos – ela parece um tanto cansada do marido com quem está há tanto tempo. Ele, não: ele a ama profundamente, e é até um tanto dependente dela na tomada das decisões – as pequenas e as grandes. Um brinca muito com o outro, faz brincadeiras, provocações – mas Meg parece às vezes um tanto grosseira com o marido, talvez até grosseira demais. Pelo que aparece nas entrelinhas não haviam voltado a Paris desde a lua-de-mel. Fazem a viagem de trem, num sábado pela manhã, e vão para o mesmo hotel em Montmartre em que haviam ficado 30 anos antes, quando estavam começando a vida e eram bem mais duros do que agora. A impressão já de fora é péssima. Ficam no quarto que oferecem a eles apenas uns poucos minutos. Meg decide que não fica ali, quer aproveitar a viagem, quer ficar num hotel elegante, confortável. Pegam um táxi, e Meg dá gorjetas para que o motorista corra muito, revendo Paris de dentro do táxi. Meg terá diversos comportamentos assim, uma coisa de velhinha maluca que resolve dar uma de adolescente, ao longo do fim de semana e dos curtos 93 minutos do filme. Finalmente, depois desse “tour” parisiense ela resolve ficar num hotel mais sofisticado. Nick ainda tenta protestar, mas o espectador percebe que ele sabe que, em momentos como aquele, ele não conseguirá nunca demover a mulher. Bem mais tarde, naquele longo sábado, Nick e Meg, num momento de aconchego, proximidade, vão se beijar apaixonadamente em plena rua parisiense – algo que os parisienses fazem sempre, ao menos na mitologia que o cinema americano criou sobre Paris. E é nesse momento que aparece Morgan (o papel de Jeff Goldblum, um tanto amalucado). Ele reconhece Nick imediatamente, e faz uma festa danada. O casal vive uma série de experiências interessantes – algumas boas, algumas ruins – naquele fim de semana em Paris. Mas a mais marcante será, sem dúvida, o encontro de Nick com Morgan. Morgan havia sido aluno de Nick em Cambridge. O então jovem americano ficou absolutamente apaixonado pelo professor, tomou-o como seu modelo intelectual, passou a vida idolatrando-o à distância. Morgan tornou-se escritor de grande sucesso, é um homem muito rico. Nick, seu mestre, seu guia, tem um salário que não permite extravagâncias, uma vida sem glamour, e está agora forçado a abandonar até mesmo as salas de aula. O contraste é estarrecedor. Vai deixar Nick perplexo, apatetado, triste – e qualquer espectador sensível vai se entristecer com ele. Quanto à equipe técnica, são todos muito competentes. Roger Michell O diretor, nasceu na África do Sul, filho de pai diplomata, o que o levou a ser criado na Síria, e depois na então Checoslováquia. Está radicado na Inglaterra há décadas, mas eventualmente filma também nos Estados Unidos: Uma Manhã Gloriosa/Morning Glory (2010), comédia dramática sobre o universo da televisão comercial americana, por exemplo, foi feito lá. Assim como Fora de Controle/Changing Lanes (2002), um thriller. São dele também os mais do que londrinos Um Lugar Chamado Notting Hill (1999) e Vênus, com Peter O’Toole. Também é absolutamente britânico o drama Recomeçar/The Mother (2003). Em 2004, dirigiu Amor para Sempre/Enduring Love, adaptação para o cinema do romance de Ian McEwan e fez ainda Lutando pela Paz/Titanic Town (1998), passado em Belfast nos anos 70, durante o conturbado período de praticamente guerra civil. O roteirista é o premiado escritor inglês de origem paquistanesa Hanif Kureishi. Kureishi é o autor do argumento e do roteiro deste Le Week-End, e escreveu, também, os roteiros de Meu Filho, o Fanático (1997), os já citado Vênus e Recomeçar, e ainda Minha Adorável Lavanderia e Sammy and Rosie, ambos dirigidos por Stephen Frears. Jim Broadbent é um ator requisitadíssimo, com 140 títulos, como Tiros na Broadway / Bullets Over Broadway (1994), E Estrelando Pancho Villa / And Starring Pancho Villa as Himself (2003), Feira das Vaidades / Vanity Fair (2004), Longford (2006), Quando você viu seu pai pela última vez? / And when did you last see your father? (2007), Einstein e Eddington (2008), A Jovem Rainha Vitória / The Young Victoria (2009), Maldito Futebol Clube / The Damned United (2009), Circuito Fechado / Closed Circuit (2013). Já Lindsay Duncan, uma ótima atriz, lindíssima aos 63 anos de idade, ela parece dez anos mais jovem que Jim Broadbent, quando na verdade a diferença entre eles é de apenas um ano: ela é de 1950 e ele, de 1949. Tem 90 títulos na sua filmografia, o mais recente, Birdman (2014), mas boa parte de seu trabalho é nas séries da TV inglesa, a maioria das quais não chega aqui. Em 2006, ela já havia interpretado a mulher de um personagem feito por Jim Broadbent, em Longford, uma beleza de filme sobre um homem que lutou a vida toda para que as prisões britânicas dessem um tratamento digno aos presos. Lindsay Duncan foi considerada a melhor atriz pelo British Independent Film Awards; nesse mesmo prêmio, o filme teve indicações também nas categorias de melhor filme, melhor roteiro, melhor ator para Jim Broadbent e melhor coadjuvante para Jeff Goldblum. Apesar de toda essa equipe o diretor e o roteirista deixam o final em aberto, Nick e Meg não sabem o que virá no seu futuro. Resta a dúvida, se de propósito, ou por falha, sem saber exatamente como terminar. De resto, é tudo proposital mesmo: muito provavelmente eles não têm ideia do que virá depois. Pelo histórico dessa equipe De resto, é tudo proposital mesmo: muito provavelmente eles não têm ideia do que virá depois. Pelo histórico dessa equipe técnica, é mais provável que Kufeishi e Michell deixaram uma porta aberta para que cada espectador conclua o que vai acontecer logo a seguir com Nick e Meg. Afinal de contas cinema é imaginação...
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Nelson Marques Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) e Associação Cultural Cineclube Natal e-mail: [email protected] Milada (idem) é um filme tcheco de 2017 do gênero drama biográfico numa produção da República Tcheca e EUA e mostra parte da vida de Milada Horáková, uma heroína real que enfrentou o nazismo e o comunismo na Tchecoslováquia, lutando contra tudo e contra todos para defender suas crenças durante o período da Tchecoslováquia comunista. Milada Horáková e seu esposo, Boohuslav, foram presos em 1940 pelos nazistas e levados para um campo de detenção. Após dois anos de detenção, durante o julgamento por conspiração, a sentença original de pena de morte, foi substituída por 8 anos de prisão em Aichach. Ao final da guerra, em 1945, a Tchecoslováquia estava livre do domínio alemão e ela pode voltar para sua casa em Praga. Milada recebeu a Legião de Honra da França, diretamente das mãos do general Charles de Gaulle. Elegeu-se parlamentar, lutou politicamente contra o comunismo... e perdeu! Com o auxílio da então União Soviética, os comunistas tchecos “conseguiram” a renúncia do presidente da república e de seus ministros e deram um golpe de estado em 1948, o chamado Golpe Tcheco, ou Golpe de Praga. O Partido Comunista Tcheco ao assumir o poder começou a montar um sistema ditatorial caracterizado pela repressão e assassinatos de quem não lhe era subserviente. Milada foi perseguida, mais uma vez, e desta vez não pelos nazistas, e a sua família ameaçada e presa. Foi julgada em 8 de junho de 1950 e condenada à morte sob a acusação de conspiração e traição. Seu apelo de comutação de pena, corroborado por personalidades famosas como Albert Einstein, Winston Churchill, Eleanor Roosevelt, foi ignorado. Ela foi executada por enforcamento na prisão de Pankrác em 27 de junho de 1950 aos 48 anos de idade. Em 1953, Boohuslav conseguiu sair da Tchecoslováquia e chegou em Washington, DC, sozinho, depois de muitas tentativas fracassadas de também levar a filha dos dois, Jana. Ela só conseguiu se reunir com seu pai nos EUA em 1968, quase 20 anos depois da separação forçada de ambos. Em 1989 o comunismo na Tchecoslováquia é derrubado em uma revolução pacífica, a chamada Revolução de Veludo, resultando na redemocratização do país. Além da sua atuação política, Milada é lembrada também pelas suas últimas palavras apostas em sua carta de despedida endereçada à sua filha. Essa carta só foi entregue a Jana muito tempo depois da execução de sua mãe e faz parte dos momentos finais do filme, numa cena muito emotiva. Vale a pena fazer parte dessa corrente de sentimentos deixando correr solta as suas próprias emoções. O filme tem uma direção segura de David Mrnka e o roteiro foi escrito a quatro mãos por David Mrnka e Robert J. Conant e um elenco de muito boa qualidade: Ayelet Zurer (Milada Horáková), Robert Gant (Boohuslav), Anna Geislerová (Brozova), Hana Vagnerová (Marta), Karel Dobry (KGB – Makarov) e Vica Kerekes (Vera Turnová).
Apesar de emotivo em quase todo o tempo, o filme é um tanto tendencioso, mostrando os maus efeitos do comunismo, que não ocorreram o tempo todo durante o período retratado no filme. Ao se concentrar excessivamente na questão das torturas sofridas por Milada nas prisões tchecas, negligencia o conteúdo nazista semelhante que a mesma Milada sofreu também por muito tempo. Mas a meu ver, o pecado maior do filme é o de não apresentar ao grande público os feitos e os motivos de Milada ser uma referência para as causas que defendia, tanto na Tchecoslováquia, quanto no mundo. Nelson Marques Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) e Associação Cultural Cineclube Natal e-mail: [email protected] The Good Fight é uma websérie produzida para o serviço de streaming da CBC CBC All Access. É a primeira série de scripts original do CBS All Access. A série criada por Robert King, Michelle King e Phil Alden Robinson é um spin-off e sequência de The Good Wife, criada também pelos “Kings”. A primeira temporada contém dez episódios, estreou em 19 de fevereiro de 2017, com o primeiro episódio sendo exibido na CBS e os nove episódios seguintes no CBS All Access. A série segue Christine Baranski como Diane Lockhart, pois ela perde o emprego depois que um enorme golpe financeiro destrói a reputação de sua afilhada Maia (Rose Leslie) e as economias de Diane, levando-as a se juntar a Lucca Quinn (Cush Jumbo) em um proeminente escritório de advocacia de Chicago. A série é estrelada por Baranski, Leslie, Jumbo, Erica Tazel, Sarah Steele, Justin Bartha, Delroy Lindo, Nyambi Nyambi, Michael Boatman e Audra McDonald, apresentando Paul Guilfoyle e Bernadette Peters em papéis recorrentes. A produção executiva é de Robert King, Michelle King, Ridley Scott, David W. Zucker, Liz Glotzer, Brooke Kennedy e Alison Scott. A quarta temporada de The Good Fight estreou em 9 de abril de 2020 e concluída em 28 de maio de 2020 nos EUA. No Brasil, apesar de já constar no catálogo da Prime Video, ainda não está disponível. A série já foi renovada para uma quinta temporada. Quando a CBS anunciou que um derivado da série The Good Wife seria produzido após o término da série original, provavelmente a maioria do público ficou com certa desconfiança. Apesar de que continuações são comuns nesse mundo de produção televisiva, a originalidade e a seriedade da criação de Robert e Michelle King parecia não deixar brechas para esse tipo de oportunismo comercial. Mesmo que a última temporada tivesse muitos tropeços em sua reta final, a ponto de tornar enfraquecida sua despedida, nenhum deles provocou a descrença absoluta a respeito do quanto os sete anos de vida da atração foram positivos. No entanto, o anúncio da contratação dos primeiros nomes para os papéis principais trouxe certo alívio e uma nova esperança de que poderíamos ter não uma continuação, mas a produção de uma nova trama tendo como fundo algumas lembranças da série anterior. Dentre esses nomes, os primeiros que surgiram foram os de Christine Baranski e Cush Jumbo, antiga e nova parceira de Alicia, a personagem principal de The Good Wife. O nome de Rose Leslie surgiu em seguida como terceiro elemento do trio de protagonistas, mas logo as contratações de outros nomes vistos em The Good Wife deixou uma coisa bastante clara: a dupla King estava fazendo efetivamente uma série nova. Felizmente eles continuaram arriscando muito na abordagem de tópicos políticos e sociais, mesmo que ousando pouco na dramaturgia. Desta vez resolveram investir pesadamente, a partir da segunda temporada nas questões envolvendo o governo de Donald Trump (ou desgoverno, como o de Bolsonaro, aqui no Brasil). É importante destacar que o que acontece em cada episódio da série The Good Fight é passível de ser transportado para qualquer outro país em que não há um governo preocupado com as questões sociais importantes para seus cidadãos, mas apenas atendimento de questões privadas, ou mesmo particulares dos donos do poder, seja nos EUA, Reino Unido ou Brasil. Neste caso particular, então, a série é extremamente educativa para nós brasileiros ao mostrar os meandros e porões dos desgovernos, quaisquer que sejam eles. O bordão que temos visto quase todos os dias ao dizermos para nós próprios - ‘Isso não é normal. Isso não é normal. Isso não é normal’ – deve servir para nos manter conscientes e atentos ao que acontece à nossa volta. É cada vez mais difícil encontrar pessoas que saibam explicar o que está acontecendo. Há uma ansiedade permanente que aflora quando se lê o jornal ou escuta as notícias do dia. Precisa-se de um escapismo diário para não enlouquecer de vez, ainda mais quando ouvimos corriqueiramente “Verdade não é verdade”, dito por um advogado do presidente Trump há alguns meses na televiso e repetido diariamente por qualquer dos membros do clã Bolsonaro e seus seguidores. Felizmente temos The Good Fight para mostrar que a boa luta ainda importa e é necessária ainda mais aqui, no Brasil, já que os americanos conseguiram se livrar, depois de muita luta, da excrescência do governo Trump. Desde a segunda temporada e mais ainda no início da terceira temporada, ficou claro que o roteiro continuaria fazendo seu comentário político acerca do que vem acontecendo no mundo real. Erosão da democracia, total desapego aos fatos e às leis e uma necessidade enlouquecida de resolver os problemas em contraposição às instituições. Temos amostras repetitivas disso tudo acontecendo aqui em nosso país, em nosso quintal. Contudo, a série vai além e resgata um dos ingredientes que tornaram The Good Wife, a série anterior tão boa: os comentários sociais e políticos. É claro que ele sempre esteve lá, como, por exemplo, o esclarecedor debate sobre violência policial que tivemos no primeiro ano da série. Contudo, não com a mesma personalidade que The Good Fight trouxe nas temporadas seguintes, como por exemplo, dois episódios bem reveladores das intenções dos realizadores: The One with Lucca Becoming a Meme e The One where a Nazi Gets Punched. Ambos propõem uma difícil, porém necessária conversa sobre equidade salarial entre negros e brancos, homens e mulheres e a tradicional disputa de classes. Para encerrar, alinho aqui algumas das razões que me fizeram gostar imensamente da série The Good Fight. Nesse ponto me “aproprio” de algumas das ideias e sugestões de Tarsila Zamami emitidas em seu comentário publicado em 22 de agosto de 2018 nos seus posts Confissões e Sincericídios:
a. Diane definitivamente não é uma segunda Alicia, nos apresentando um outro lado de Diane, onde suas ambições nunca ultrapassam sua moral. Suas atitudes podem até ser controversas em alguns momentos, mas não a ponto de serem questionáveis; b. A série é sobre Diane e não sobre Alicia, apesar da premissa das duas séries ser a mesma: recomeçar. Alicia teve que recomeçar sua vida quando as traições de Peter vieram a público e o marido foi preso. Já Diane se vê obrigada a mudar de vida, esquecer a tão sonhada aposentadoria na Itália e começar novamente quando ela perde boa parte do seu patrimônio por conta de um esquema de pirâmide criado por um de seus amigos mais íntimos; c. É a segunda temporada que dá o tom para a série e esta é essencialmente sobre Diane, mas sem deixar de focar também em Lucca (Cush Jumbo), Maia, Marissa (Sarah Steele), Liz (Audra McDonald) ou Adrian;c. A ironia fina, as sutilezas, os silêncios que dizem tudo, a trilha sonora que se encaixa perfeitamente ao episódio, o ritmo ágil, as discussões sobre o cenário político, os casos controversos: todos os elementos que fizeram com que eu me apaixonasse por The Good Wife estão escancarados na segunda e demais temporadas. Os temas são pesados, atuais e importantes, mas a trama está mais leve e divertida do que nunca; d. Trump é um personagem recorrente. Achei que, sem Peter, Alicia ou Eli, ia sentir falta dos bastidores políticos, um dos pilares de The Good Wife. Mas, no fim das contas, a política nunca sai de cena em The Good Fight. E não é por conta da tentativa de Colin se aventurar no meio político. Na verdade, a gente deve isso ao Trump. Se é possível dizer que ouve algum lado bom na eleição de Trump, sem dúvida, é o prato cheio que ele virou para os episódios da série. Para começo de conversa, é engraçado (se não fosse trágico) o spin-off começar com a incredulidade de Diane, uma legítima democrata, acompanhando a cerimônia de posse. Além disso, todos os episódios da segunda temporada levam o nome dos dias que ele está no governo: “day 408”, “day 415”, “day 422” e por aí em diante. e. Atualmente, muitas séries e programas americanos se alicerçam em críticas sobre o presidente, mas The Good Fight vai além e faz um trabalho ainda melhor: ela cria todo um contexto na história para inserir a crítica ao governo. O episódio do partido democrata tentando secretamente fundamentar o impeachment, a perseguição do serviço de imigração, o vídeo do golden shower, as fake news, a crítica do “Einstein visa” concedido à Melania, Julius (Michael Boatman) ter votado em Trump (e a crise de confiança que isso desencadeia), o episódio de TV que não foi ao ar por medo da reação da Casa Branca… as alfinetadas estão lá, inteligentemente inseridas e com um senso de humor ácido e maravilhoso. Parece que estamos vendo histórias acontecidas aqui no Brasil, no governo Bolsonaro; f. E por falar em senso de humor…a série tem uma das melhores aberturas dos últimos tempos. The Good Wife nunca teve uma abertura propriamente dita. Felizmente The Good Fight se redime nesse quesito e tem uma abertura espetacular. É simples, mas ao mesmo tempo é muito inteligente. A calmaria inicial dos primeiros segundos exibindo objetos comuns e depois tudo explodindo no mais completo caos traduz muito do cenário atual que vivemos; g. A televisão ligada com cenas de Putin e, logo em seguida, de Trump é uma crítica direta. A imagem dos protestos nazistas é um sinal de alerta importante. A mudança da música da abertura no episódio em que Adrian foi baleado mostra o quanto a série se preocupa com cada detalhe. A transição do vaso branco que Diane coloca na janela no último episódio para o vaso que costumamos ver na abertura é de uma delicadeza e tanto. O “previously” todo escrito e mostrando apenas cenas na miniatura da televisão é simples, criativo e original. A chamada em russo para o próximo episódio que falará sobre fake news é sensacional; h. Os casos continuam atuais, polêmicos e completamente pertinentes. Os casos controversos e inteligentes que marcaram cada episódio de The Good Wife também são marca registrada em seu spin-off. The Good Fight, assim como a sua predecessora, também não tem medo de falar de racismo, estupro, política, violência policial, novas tecnologias e tantos outros temas delicados. Uma doadora pode ter seu embrião de volta se ele não foi utilizado no período pré-determinado? Um médico pode ser preso por ajudar a salvar a vida de um possível terrorista? Quais as implicações legais de se criar um site para denunciar mal comportamento de homens? Um canal de televisão deve ser condenado por não tomar providências quando um participante de reality show abusa sexualmente de outra participante? Como provar que houve criação de fake news e micro direcionamento para influenciar o júri? Como controlar discursos de ódio e o que pode ou não ser dito nas redes sociais? Essas e tantas outras questões sobre temas controversos foram abordados na trama até agora. As novas tecnologias e as formas de se relacionar mudaram muito na última década e a série não tem medo de se aventurar sobre as brechas e interpretações que essas mudanças podem trazer na lei; i. A hipocrisia da vida real: Para ajudar Colin (Justin Bartha) na sua campanha política, Lucca aceitou entrar no jogo político e editar algumas de suas opiniões e partes de sua vida. Para manter o contrato com um cliente importante, a firma fez questão de enfatizar que Julius votou em Trump, mesmo tendo-o crucificado por isso nos bastidores. Após ter rejeitado Diane quando ela mais precisou, Renée volta a convidá-la para ser sócia de sua empresa quando Lockhart consegue se estabelecer novamente. Para conseguir o contrato com o Partido Democrata, Liz, Adrian, Julius e Diane aceitaram interpretar na sala de reuniões estereótipos que condenavam, pois sabiam que o Partido estava os observando pelas câmeras; j. Ou seja, assim como na vida, The Good Fight não é simples nem maniqueísta. As pessoas e as situações são complexas e ambivalentes. Às vezes, em prol de interesses maiores, nós acabamos nos sujeitando a papeis que uma vez condenamos. Às vezes, para nos proteger, podemos machucar outras pessoas. k. Em suma, uma série política que deve ser vista e apreciada! |
AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
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