Nelson Marques Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) e Associação Cultural Cineclube Natal e-mail: [email protected] Há pouco fiz um pequeno ensaio sobre a primeira cineasta do mundo do cinema, Alice Guy-Blaché, contemporânea dos irmãos Lumière, Thomas Edison e Georges Melies (). Com ele fui surpreendido pela inversão de valores (e de gênero) que aconteceu no mundo do cinema, na América do Norte e na Europa, desde então. Mais mulheres trabalhavam como produtoras e diretoras nas primeiras décadas do cinema do que em qualquer outra época da história do cinema, incluindo a nossa atualidade. É bom lembrar que desde a institucionalização da premiação anual do Oscar nos EUA, em 1929, apenas duas mulheres ganharam o prêmio de melhor direção, Kathryn Bigelow, com Guerra ao Terror (The Hurt Locker), em 2009 e Chloé Zhao, em 2021, com Nomadland (que foi também premiado como melhor filme). Em 92 anos de Oscar, mulheres venceram as principais categorias (melhor filme, direção, roteiro original e roteiro adaptado) 28 vezes apenas. No Festival de Cannes, desde o seu início, em 1946, também apenas duas mulheres ganharam a Palma de Ouro, Jane Campion com o filme O Piano, em 1993 e Julia Ducournau, em 2021, com o filme Titane. Para saber mais a respeito, há um excelente documentário realizado pelas irmãs francesas, Clara e Julia Kuperberg, em que esse “fenômeno” é analisado criticamente, com dados estatísticos frios e tristes que mostram que na indústria cinematográfica americana atual, apenas 8% dos blockbusters e 20% dos filmes independentes são dirigidos por mulheres. Metade dos filmes produzidos em Hollywood até 1925 eram dirigidos por mulheres. O documentário, de 2015, é E A Mulher Criou Hollywood (Et La Femme Créa Hollywood), França, digital, 52 minutos. Infelizmente muitas destas cineastas pioneiras foram simplesmente deixadas de lado na história do cinema e suas obras subavaliadas. Isso sem contar com um número bastante significativo de atrizes que fizeram sucesso à sua época e hoje estão praticamente “fora” da história do cinema também (ver a listagem). Sem muito esforço de pesquisa e/ou memória listamos cerca de 20 cineastas importantes, nascidas entre os anos 1870 do século 19 e primeiras décadas do século 20. A primeira delas foi referida no ensaio citado acima, Alice Guy-Blaché (1873-1968), foi cineasta pioneira e que dirigiu o primeiro filme falado, além de inovar com a criação de efeitos especiais. Em sua vida no cinema, até 1920, teve mais de 1.000 filmes produzidos na França e nos EUA. Em ordem cronológica de nascimento, seguem Olga Preobrazhenskaia (1881-1971), primeira cineasta do cinema soviético, fundadora e professora da escola russa de cinema VGIK, ainda em funcionamento; Germaine Dulac (1882-1942), fundadora da produtora DH Filmes, ao lado de Irène Hiller-Erlanger e com intensa atuação também no circuito cineclubista francês, defensora do cinema de vanguarda e fundadora da Cinémathèque Française na década de 1930; Lois Weber (1879-1939), a primeira mulher americana a dirigir filmes, a mais bem paga do cinema mudo e que fez o primeiro filme colorido, além de ter muitos recursos técnicos e enquadramento ousados, foi também a primeira cineasta a ser admitida na Motion Picture Directors Association; Frances Marion (1888-1973), roteirista, autora e jornalista, citada como a mais renomada roteirista feminina do século XX e escrevia roteiros para a estrela de Hollywood Mary Pickford, foi a única mulher a ganhar dois Oscar nessa categoria; Mabel Normand (1892-1930), principal comediante do cinema mudo americano, além de se dedicar intensamente a roteiros e direção, com 26 títulos entre 1912 e 1915), sendo pioneira no mister de dirigir e atuar ao mesmo tempo, foi mentora de Charlie Chaplin; Mary Pickford (1892-1979), atriz que contribuía ativamente para a profissionalização da profissão, foi fundadora, juntamente com Douglas Fairbanks, seu marido à época, Charles Chaplin e David Griffith da United Artists; Grace Cunard (1893-1967), diretora de 17 filmes, produtora de 4, roteirista de 99, e atriz de 168 filmes; Helen Holmes (1893-1950), diretora de 2, produtora de 2 e atriz de 141 filmes; Marie-Louise Iribe (1894-1934), mesmo tendo morrido cedo, aos 39 anos, deixou marcas importantes no cinema mudo e falado na França, formou sua própria produtora, a Les Artistes Réunis, ao lado de seu marido Pierre Renoir; Dorothy Davenport Reid (1895-1977), diretora de 7, produtora de 12, roteirista de 23, e atriz de 149 filmes, foi produtora e roteirista até a década de 1950; Dorothy Arzner (1897-1979), teve uma carreira intensa, foi a diretora mais poderosa da indústria cinematográfica americana à época, foi também roteirista e uma das primeiras a introduzir a temática, hoje chamada de LBGT, nos filmes, foi a primeira mulher a entrar para o Directors Guild of America; Madeline Brandeis (1897-1937), escritora de livros infantis e de duas séries de muito sucesso Children of America e Children of All Lands, diretora de filmes para crianças através do seu estúdio The Little Players' Film Co.; Lotte Reiniger (1899-1981), diretora de cinema alemã e a maior pioneira da animação de silhuetas, fez mais de 40 filmes, todos usando a sua própria técnica de animação e de silhuetas, fez o que é considerado o mais antigo longa-metragem de animação, As Aventuras do Príncipe Achmed, em 1926 e Papageno,1935, com música de Mozart, 10 anos antes do longa-metragem de Walt Disney Branca de Neve e os Sete Anões, que é de 1937, ela também foi precursora da primeira câmara multiplano; Leni Riefenstahl (1902-2003), nascida em Berlim, foi dançarina, atriz e diretora que sempre provocou divisões nos seus críticos em razão de sua ação política e estética à época do nazismo; Claire Parker (1906-1981), engenheira americana envolvida com a técnica de animação pinscreen (écran d´epingles) e a sua filmagem quadro por quadro; Mary Ellen Bute (1906-1983), americana pioneira da animação e do cinema experimental, criando o que foi chamado de “música visual”, uma nova forma cinética de arte visual, reunindo som, cor e forma; Maya Deren (1917-1961), foi dançarina, coreógrafa, poeta, escritora, ativista cinematográfica, teórica e cineasta independente e pioneira na vanguarda americana. Nunca antes na história da indústria cinematográfica a representatividade entre homens e mulheres foi tão equilibrada. Existia uma aceitação e reverência ao ponto de vista feminino. As mulheres dirigiam longas-metragens e lideravam mais de vinte empresas de produção além de escreverem roteiros que eram produzidos. À época foram pioneiras em cargos de direção de arte, publicidade e montagem. Através das grandes modificações sociais dos anos 1940 e 1950, Hollywood acabou se transformando numa das indústrias mais conservadoras da América do Norte quando se fala na questão de gênero. Desde o início da industrialização do cinema acontecem problemas como a falta de representatividade, diferenças salariais e assédio. Por ser um assunto aparentemente exclusivo das mulheres, as mudanças têm ocorrido a passos lentos. Não foi à toa que em maio de 2018, 82 mulheres lideradas por Cate Blanchet e Agnés Varda fizeram um protesto no Festival de Cannes daquele ano acerca da desigualdade de gênero existente desde a sua primeira edição, em 1946. Para aqueles que quiserem avaliar por si próprios a presença das mulheres no início do cinema, há uma coletânea de 6 discos em formato duplo, DVD e Blu-ray, que traz à luz, finalmente, uma coleção de “highlights” de filmes de 14 dessas cineastas pioneiras, inovadoras e criativas que fizeram filmes no início da era do cinema. O box tem como título Early Women Filmmakers e é da Flicker Alley e Blackhawk Films. Todos em versão restaurada. Com essa “amostra” talvez possamos agora reescrever a história inicial do cinema e celebrar a sua posição correta na história dos primeiros filmes e do cinema em seu início. Essa extraordinária obra de pesquisa e produção, no total são mais de 10 horas de gravação, apresenta 25 filmes realizados entre 1902 e 1943, incluindo muitos títulos raros e de difícil acesso, num panorama amplo de curta-metragem, de ficção a animação, narrativas comerciais e trabalhos experimentais. Os trabalhos de direção incluem Alice Guy Blaché, Lois Weber, Mabel Normand, Madeline Brandeis, Germaine Dulac, Olga Preobrazhenskaia, Marie-Louise Iribe, Lotte Reiniger, Claire Parker, Dorothy Davenport Reid, Leni Riefenstahl, Mary Ellen Bute, Dorothy Arzner, e Maya Deren. Elas foram técnica e estilisticamente inovadoras, ampliando os limites de narração, de estética e de gênero. Há também outro box, este da Kino – Pioners First Women Filmakers – que em 6 discos também, com 1320 minutos de gravação de filmes restaurados traz, além de filmes de Alice Guy-Blache e Lois Weber, os nomes de Helen Holmes, Grace Cunard, Mabel Normand, Angela Murray e Zora Neale. De maneira surpreendente para os nossos padrões culturais, o canal de assinaturas Telecine, pelas mãos da curadora do Telecine Cult, Karina Branco, apresentou em dezembro de 2020 a Mostra Pioneiras do Cinema, abrindo o Festival 125 Anos de Cinema. Foram oferecidos 16 filmes de sete diretoras pioneiras, compondo um retrato do quão forte e variada era a produção feminina nas primeiras décadas do cinema (Alice Guy-Blaché, com sete filmes, O Amor Maior de um Homem, 1911; Algie, O Mineiro; 1912; A Garota na Poltrona, 1912; Americanização, 1912; O Cair das Folhas, 1912; Casamento às Pressas, 1913; A Orfã do Oceano, 1916), Lois Weber (três filmes, Suspense, 1913; Insatisfação, 1916; A Mancha, 1921), Germaine Dulac (dois filmes, O Cigarro, 1919; A Sorridente Madame Beudet, 1923), e com um filme cada uma delas, Olga Preobrazhenskaia (Mulheres de Ryazan, 1927), Mabel Normand (Carlitos no Hotel, 1914); Marie-Louise Iribe (O Rei dos Elfos, 1931) e Mary Ellen Bute (Parábola, 1937). Não sei se são passiveis ainda de acesso. Em termos de Brasil, por poucas que sejam as informações, pouco se fala sobre as mulheres que ajudaram a construir nossa história, tivemos algumas pioneiras também no cinema brasileiro. Cléo de Verberena, nome artístico da paulistana Jacira Martins Silveira, é considerada a primeira mulher a dirigir um longa-metragem O Mistério do Dominó Preto, em 1931. Foi produzida e estrelada por ela, também. Outro nome que deve ser lembrado é a da imigrante portuguesa radicada no Brasil Carmen Santos. Foi atriz em Urutau, de 1919, de William Jansen, Sangue Mineiro, 1929, de Humberto Mauro e Limite, 1931, de Mário Peixoto, participou das adaptações de A Carne, de Julio Ribeiro (nunca lançado), e Melle Cinema, de Benjamim Costallat. Foi produtora do projeto Onde a Terra Acaba, com Mário Peixoto, finalizado em 1933, estreando sem grande sucesso. Foi fundadora da Brasil Vox Filmes (depois Brasil Vita Filmes). Nos anos 1930 nascia em São Paulo, outra de nossas grandes cineastas, Suzana Amaral, que se voltou para o cinema no final da década de 1960. Em 1985, dirigiu A Hora da Estrela, da obra de Clarice Lispector, e foi quando Marcélia Cartaxo, sua protagonista, recebeu o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Berlim. Já na década de 1940, nascia a cineasta Ana Carolina Teixeira Soares, ou simplesmente Ana Carolina. Seu primeiro longmetragem foi o documentário Getúlio Vargas, 1974, mas foi com a trilogia Mar de Rosas, 1977, Das Tripas Coração, 1982 e Sonho de Valsa, 1987 que ela ocupa definitivamente o seu nicho de discussão sobre a mulher e a família na sociedade. Assim como Ana Carolina, a cineasta Tereza Trautman se destacou por realizar um cinema contestador, através da crítica de cinema feminista.
Para mais informações sobre o papel e as ações em defesa da mulher, consulte os sites Women Film Pioneers Project, Columbia University (http://wfpp.columbia.edu) e o Center for the Study of Women in Television & Film (https://womenintvfilm.sdsu.edu).
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AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
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