Gianfranco Marchi Cineclube Natal e ACCiRN – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte e-mail: [email protected] Agnès Varda, uma das pioneiras da Nouvelle Vague, morreu em 29 de março do corrente ano, em decorrência de complicações de um câncer de mama, aos 90 anos de idade, na cidade de Paris. A morte da cineasta aflorou muitos sentimentos no coração de cinéfilos ao redor do mundo, rendendo-lhe inúmeras e merecidas homenagens. Como cineclubista, fez-me lembrar dos vários filmes que exibimos da dama belga ao longo de tantos anos de atividade do Cineclube Natal. Em especial, de um acontecimento que virou uma anedota interna, ocorrido quando da exibição do seminal Clèo das 5 às 7, no Nalva Melo Café Salão, na Ribeira. Foi um evento agridoce, vez que convocamos a imprensa local para discutir o futuro do cineclubismo na Cidade do Sol, considerando as cada vez mais minguadas sessões – realidade que se agravaria no decorrer dos anos, diga-se de passagem. Entretanto, estávamos alegres porque seria a primeira vez que o cinema de Varda apareceria na nossa telinha e ansiosos pela reação da platéia ao seu cinema existencialista. Não obstante essa animação, durante o referido evento com a imprensa, escutamos de uma badalada personalidade local, senhora com estreitas ligações com o audiovisual, inclusive, bradar arrogantemente que não tínhamos público porque ninguém queria ver “Cléo de não sei do quê às não sei das quantas” e que deveríamos exibir filmes como Batman Begins – produção que então gozava o ápice de sua popularidade. O comentário foi chocante. Não só pelo fato de que aquela pessoa desconhecia a proposta do cineclubismo, mas principalmente porque na suposta qualidade de entendedora da sétima arte, obviamente ela não tinha a menor ideia de quem se tratava Agnès Varda e a importância de sua obra, principalmente para a visibilidade da mulher por trás das câmeras. E esse desconhecimento é trágico. Realmente, Varda passou anos à sombra de seus contemporâneos da Nouvelle Vague, diretores do cacife de Jean-Luc Godard e François Truffaut, ou mesmo de seu próprio marido, o maravilhoso Jacques Demy. Mas os deuses do cinema foram bons com a belga. Sua longevidade e incessante curiosidade com as questões existenciais do ser humano lhe consolidaram como um ícone da sétima arte, cujos últimos trabalhos, como o magnífico Visages, Villages, de 2018, ainda se mostram profundamente relevantes e belos. Varda se destacou como cineasta nas décadas de cinquenta e sessenta com filmes como La Pointe Courte (1955) e o prefalado Cléo das 5 às 7 (1962), que a estabeleceram como uma diretora autoral na crescente nova onda. Muito embora o gênero hoje seja mais lembrado por seus diretores masculinos, as contribuições de Varda ao movimento na verdade predatam muitas das obras de seus companheiros. Nascida na Bélgica em 1928, Agnès Varda cresceria para estudar história da arte e fotografia na França. Seus tocantes filmes, que às vezes misturam documentário e ficção, ou passeiam entre ambos, comumente focam na vida de mulheres complexas, abordando questões intrinsecamente feministas, ou temáticas de cunho social. Em 1951, Varda foi indicada fotógrafa oficial do Théâtre National Populaire, permanecendo no cargo por uma década. Em 1954, muito antes de François Truffaut se tornar o medalhão da Nouvelle Vague francesa, o primeiro filme de Varda, o mencionado La Pointe Courte, já abordava a história de um casal em crise na cidade portuária de Sète, antecipando o tema referente as conflito homem/mulher, tão caro ao francês. Varda já havia realizado inúmeros documentários de curta metragem, mas a falta de fundos a impediu de dirigir seu próximo filme, Cléo das 5 às 7, até o ano 1961. Ela se tornou famosa por esta produção, um filme em tempo real sobre uma jovem mulher que espera o diagnóstico definitivo de um câncer, no qual Varda faz um brilhante estudo entre o tempo objetivo e o subjetivo. Apoiada pelo empresário Georges de Beauregard, que já havia financiado Acossado, de Jean-Luc Godard, o filme é uma profunda análise da personagem Cléo, que diante da perspectiva de sua finitude, evolui de uma estrela pop superficial para um autêntico ser humano, capaz de entender não só a sua dor, como também a dos outros. O filme foi um enorme sucesso de crítica e público, construindo as bases para seu próximo longa, As Duas Faces da Felicidade, que ganharia o Leão de Ouro no Festival de Berlim de 1965. Em 1968 Agnès Varda presenteia o mundo com o média-metragem Black Panthers, documentário por ela produzido quando morava nos Estados Unidos, deixando clara sua aliança com os movimentos sociais, posicionamento que reafirmaria no longa de ficção Lions Love, do ano seguinte. Em 1977, Varda lança Uma Canta, a Outra Não, filme no qual aprofunda sua visão do feminismo, tema que repareceria no elogiadíssimo longa Sem Teto Nem Lei, de 1985, com a atriz Sandrine Bonnaire, no qual é contada a história de morte e vida – nessa ordem – da andarilha Mona, mulher que vive em seus termos e se recusa a dobrar-se perante a sociedade patriarcal, através da perspectiva das diversas pessoas que cruzaram seu caminho. Uma reflexão sobre a solidão feminina. Em 2017 Varda foi premiada com um Oscar honorário pela Academia e continuou fazendo filmes até anunciar sua aposentadoria no início de 2019. Sabia que não lhe restava muito tempo, mas ainda nos deu um último presente, o documentário Varda par Agnés (2019), no qual expõe seus processos de criação e revela sua experiência com o fazer cinematográfico, tecendo comentários pessoais sobre as suas produções. No aspecto pessoal de sua vida, Varda foi casada com o diretor francês Jacques Demy, morto em 1990 vitimado pela AIDS, a quem ela homenageou no tocante Jacquot de Nantes (1991). Deixou dois filhos com Jacques, Mathieu Demy e Rosalie Varda, ambos envolvidos com o cenário cinematográfico francês.
Com Agnès Varda morre uma lenda. Aliás, não se pode falar em morte, realmente, quando se menciona uma artista de seu calibre. Seu coração para sempre pulsará em suas obras, pedaços de si mesma deixados como presentes para o mundo. Varda abordou seu cinema, seja na forma de documentário ou ficção, com um olho peculiar e a indiscutível habilidade de arrancar doçura dos assuntos mais duros. Com seu eterno corte em formato de cuia, Varda era brincalhona, curiosa, doce, honesta e um milhão de outros adjetivos que ainda não seriam capazes de capturar seu incomparável espírito. Sua morte, aos 90 anos, nos faz lembrar de que ela é uma figura insubstituível. Se você assistiu apenas a um de seus filmes, saberá que ela era uma verdadeira joia. Varda amou o cinema e foi amada em retorno. Adeus, querida dama. A rainha está morta. Vida longa à rainha!
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Nelson Marques Cineclube Natal e ACCiRN – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte e-mail: [email protected] O roteiro da série é mais do que manjado: Em seu aniversário de 36 anos, Nádia Vulvokov (ótima interpretação de Natasha Lyonne, de American Pie e da série Orange is the new black), vive a experiência de morrer e acordar muitas e muitas vezes... Esse reviver repetido do mesmo dia já foi visto em muitos outros filmes: A Morte te Dá Parabéns (Happy death day, 2017, de Christopher Landon), Feitiço do Tempo, Groundhog day, 1993, de Harold Ramis), Antes que Eu Vá (Before I fall, 2017, de Ry Russo-Young), Antes que Termine o Dia (If only, 2004, de Gil Junger), No Limite do Amanhã (Edge of tomorrow, 2014, de Doug Liman)... A série é mais um acerto da Netflix para 2019. É uma comédia (drama?) existencial (se existir essa categoria, gênero, ou subgênero) de Amy Poehler, Leslye Headland e a própria Natasha Lyonne, que assinam também o roteiro e a direção da série. O que diferencia, então, a série? Exatamente o roteiro bem construído, em que Nadia passa da primeira reação de achar que está alucinando pelo uso continuado de drogas, que já aparece logo no início, na festa de seu aniversário (cocaína misturada com alguma outra coisa, feita por... traficantes israelenses!). Porém com a repetição contínua do evento, Nadia começa a se questionar que esse retorno repetitivo pode ter algum outro objetivo. É nesse insight de Nadia (dos roteiristas e dos diretores) que a série adquire uma originalidade interessante, se comparada com outros filmes de temática semelhante. Ou seja, se a cada dia se tenta consertar algo, mesmo que acabe morrendo em seguida, as questões permanecem sempre em evidência. Por mais que Nadia queira descobrir o que acontece, as respostas quase nunca vêm. O que vale, então, são as diversas relações estabelecidas, umas tristes, outras engraçadas, outras conflitantes e muitas turbulentas. É aí que a história se transforma numa história nova, original, sobre um tema já conhecido. A perspectiva de Nádia se amplia quando ela se depara com uma outra pessoa, Alan (papel de Charlie Barnett), que vive a mesma experiência. O passo seguinte, e aí a série cresce conceitualmente, é que a dupla passa a construir teorias e mais teorias sobre o que está acontecendo a eles. Com isso se evita o grande problema de filmes semelhantes, que a repetição canse e passe a chatear o espectador. A cada episódio, a trama muda um detalhe ou outro, o que leva a novas interações e perspectivas. Há uma mensagem implícita na história que vai sendo construída aos poucos, até a resolução final (que não direi qual é. Assista!). A série, em razão desse bom roteiro, de uma boa direção e da empatia dos personagens, principalmente a dupla central, Nadia e Alan, envolve a todos e por isso se transforma numa grande diversão. Mais ainda... é possível fazer uma maratona como se fosse apenas um filme um pouco mais longo, pois os episódios têm apenas cerca de 25-30 minutos cada um. Preste atenção na trilha sonora, pois ela cria uma atmosfera de repetição também, com temas musicais das décadas de 1970 e 1980.
No fim de tudo, aproveite e divirta-se e pense na série e na história como a própria essência das matrioskas russas, o brinquedo tradicional da Rússia que consiste em uma série de bonecas colocadas umas dentro das outras, da maior até a menor. Poderiam ser as várias personalidades de Nadia? Nelson Marques Cineclube Natal e ACCiRN – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte e-mail: [email protected] Mais uma vez Tim Burton surpreende fãs e críticos. O mundo bizarro, sombrio e estranho de Burton, iniciado em 1985 com As Grandes Aventuras de Pee-Wee, com o comediante Paul Reubens, continuado com o excelente Os Fantasmas se Divertem, de 1988, continua em 2019 com o remake (se é que pode se chamar assim) de Dumbo, desta vez em live-action, que teve a sua estreia no Brasil agora no finzinho de março. Dumbo 2019, é um filme de fantasia e aventura, com uma hora e 52 minutos de duração. Ele faz parte do ambicioso projeto da Disney de produzir remakes em live-action dos clássicos em animação do estúdio. Os êxitos comerciais e de crítica de Alice no País das Maravilhas, de 2010, Maléfica, de 2014, Cinderela, de 2015, Mowgli, de 2016, e A Bela e a Fera, em 2017, mostraram o acerto da ideia e do projeto. O filme Dumbo, sob a direção de Tim Burton, é realizado 78 anos após a animação original, realizada em 1941. Esse foi o quarto longa-metragem de animação dos Estúdios Disney e faz parte de uma lista de Clássicos da empresa que incluem, ainda, Branca de Neve e os Sete Anões (1937), Pinóquio (1940), Fantasia (1940) e Bambi (1942). Dumbo 2019, tanto quanto o original em animação, é baseado no livro escrito por Helen Aberson, e ilustrado por Harold Pearl. Na versão de 1941, que era colorida também, mas com apenas 64 minutos de duração, a direção foi de Ben Sharpsteen e o roteiro adaptado foi escrito por Joe Grant e Dick Huemer. A música foi de Frank Churchill e Oliver Wallace. No Dumbo deste ano, o roteiro é de Ehren Kruger e a música foi composta por Danny Elfman, autor de músicas e álbuns de sucesso em Hollywood, como Batman, Beetlejuice, Spiderman, Alice in Wonderland. A produção geral é da Walt Disney Pictures e da Tim Burton Productions. Tim Burton, com um elenco de figuras algumas interessantes e outras importantes, como Eva Green, Colin Farrell, Danny DeVito, Michael Keaton, Joseph Gatt, Sharon Rooney, Finley Hobbins e Alan Arkin, conta, à sua maneira, uma história singela e tocante. Holt Carrier, uma ex-estrela de circo retorna da guerra e encontra seu mundo virado de cabeça para baixo. O circo em que trabalhava está passando por grandes dificuldades e ele fica encarregado de cuidar de um elefante recém-nascido, cujas orelhas gigantes fazem dele motivo de risos e piadas. No entanto, os filhos de Holt descobrem que o pequeno elefante de orelhas enormes é capaz de uma façanha ímpar: voar! Com essa história simples, Burton constrói o seu mundo e o mundo do circo. Assim como havia feito com A Fantástica Fábrica de Chocolate, em 2005, Alice no País das Maravilhas, em 2010, Reino Escondido, em 2013, e O Lar das Crianças Peculiares, em 2016. As impressões iniciais dos críticos chamam a atenção pela semelhança. Aparentemente é uma das melhores adaptações da Disney no projeto de retomada dos clássicos em live-action. Destacam-se a qualidade da animação, com menção especial para a aparência do Dumbo, que se revela muito simpática e tocante. Há também um entrosamento muito bom entre o elenco humano e a vida de "verdadeiro" circo (ou como ele deveria ser). Em termos de atuação, Danny DeVito mais uma vez rouba a cena com a sua característica de "gordinho" simpático (nada de pejorativo ou crítico nisso). Faz uma figura bonachona, convincente, terna e doce. Chama a atenção também o papel importante das crianças irmãs, Milly e Joe Carrier (papéis de Nico Parker e Finley Hobbins). São elas que fazem a ligação importante entre humanos e animais, na figura de Dumbo. Dumbo, por seu lado, é um ser único: tímido, engraçado, desajeitado, amoroso, ou seja, um personagem de personalidade própria e tocante (além de uma aparência "real" impressionante). Com a estréia do filme no Brasil no final de março, as críticas que foram feitas, na sua maioria, são também semelhantes entre si: apuro técnico insofismável, uma figura "real" impressionante de Dumbo mas, infelizmente, num papel quase de coadjuvante. São poucos os seus momentos nas quase duas horas de duração do filme.
A fórmula encontrada por Walt Disney, desde o início de sua carreira – juntar crianças e animais – mais uma vez se revela acertada. Mesmo que as crianças que pareciam tão naturais no trailer do filme não confirmem essa impressão inicial: elas são apáticas e frias, na atuação tão mecânica quanto a de praticamente todos os humanos adultos. Em termos de atuação, efetivamente, Danny DeVito é o melhor personagem: natural, alegre e triste na medida do necessário. Por outro lado, Colin Farrell, como o pai das crianças, parece ter incorporado o seu braço mecânico na própria atuação. Também Michael Keaton, num excesso de histrionismo, não convence ninguém como o vilão da história. Até mesmo Eva Green, como vilã inicial, não convence, no processo de transformação no caminho de uma possível e provável mãe. Enfim, Dumbo 2019, com méritos técnicos incontestáveis, é um filme irregular, que ora emociona, ora cansa, faltando sem dúvida, o encantamento lúdico do original. A "viagem" de Burton vai por outros caminhos que não a fantasia. O filme soa burocrático em demasia e sem a inspiração que merecia. |
AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
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