Nelson Marques Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) e Associação Cultural Cineclube Natal e-mail: [email protected] Culpa foi o concorrente da Dinamarca ao Oscar de Filme Estrangeiro de 2019 (ele estava classificado entre os 9 que disputariam as 5 vagas finais). Nem ganhou e nem foi para as 5 vagas finais. O que foi uma pena, pois o filme é muito criativo ao contar uma história que poderia ser enfadonha, mas se transforma em um suspense convincente. O longa-metragem se passa todo em único ambiente, uma central de atendimento telefônico de emergência da polícia. A premissa do filme é relativamente simples. O policial Asger Holm (Jakob Cedergren, de Esquadrão de Elite), após aparentemente cometer uma infração grave, é forçado a trabalhar longe das ruas, recebendo ligações telefônicas e repassando aos setores responsáveis. A sequência inicial já deixa clara a frustração de Asger de atuar em um ambiente fechado, longe da ação com a qual ele se identifica mais. Isso reflete bem o quanto pessoas que trabalham com situações de emergência acabam sendo (ou se tornando) frígidas e indiferentes, pois essas circunstâncias costumam exigir muito sangue frio por parte dos profissionais – sem falar na já tradicional fleuma dos países nórdicos, o que acentua ainda mais essas características. O que desencadeia toda a sequência de fatos que dá vida ao filme é a ligação da personagem Iben, para relatar o seu sequestro pelo ex-marido Michael. Asger, então, ignora o fim do seu turno, assim como suas atribuições limitadas, e passa a perseguir sequestrador e vítima, buscando uma resolução para o caso. Até aí nada de novo na história, mas... o que poderia ser apenas mais uma obra de um policial solitário fazendo justiça com as próprias mãos transforma-se num suspense de qualidade inquestionável, abusando da simplicidade e convidando o espectador a desvendar o mistério junto do protagonista. Entenda que toda a narrativa contada até agora se passa unicamente no setor de chamadas da polícia onde Asger trabalha. Mais especificamente, em dois únicos cômodos: um, onde inicialmente ficam os demais atendentes, e outro mais reservado. A câmera não sai de perto do personagem principal em nenhum dos 85 minutos de duração (sim, é um filme relativamente curto), ficando para nós a missão de construir todo o restante da trama em nossa cabeça. A única coisa que o diretor nos fornece são as ligações de Asger, seja para Iben, Michael, a filha do casal Mathilde, seu amigo Rashid, as centrais de polícia das diferentes regiões da Dinamarca… nada nos é mostrado além do que o protagonista também vai descobrindo no transcorrer da história. Ao contrário de outros filmes policiais, há uma ação contida, já que tudo se desenrola a partir das ligações telefônicas. O filme é basicamente expositivo, mas Gustav Möller em seu primeiro longa-metragem faz tudo ficar ajustado. Isso talvez por ser o autor também do roteiro. Essa decisão, embora corajosa, não faria de Culpa um grande filme por si só. De nada adianta ser inventivo na forma de contar algo se o objeto utilizado não for de qualidade. Felizmente, o roteiro – escrito por Möller em parceria com Emil Nygaard Albertsen – é eficiente em conceber os momentos de tensão no decorrer da trama (dando ao menos alguns espaços para que recobremos a respiração), além de explicar gradativamente o motivo de Asger estar afastado de suas funções. Convenhamos que por mais entrelaçado e cheio de reviravoltas que fosse o sequestro, dificilmente ele seria suficiente para sustentar todo o tempo de tela da produção. Como o diretor trabalha com planos fechados, a sensação de claustrofobia do personagem é transferida para o espectador. O diretor usa e abusa do recurso de nos fechar no mundo daquele personagem. Aliás, além do texto, a montagem é outro aspecto que merece bastante destaque. Imagine o quão monótono seria um longa-metragem onde tudo o que vemos se resume a um homem enquadrado da cintura para cima com um fone na cabeça. Ainda bem que o ritmo está no ponto certo, aliado a cortes dinâmicos e movimentos de câmera precisos, além de vários closes em mãos trêmulas e olhares apreensivos, tudo pensado para fazer a estrela brilhar. E que estrela! Jakob Cedergren está simplesmente fenomenal em sua atuação, indo de uma pedra de gelo a um braseiro em chamas em uma crescente que corresponde perfeitamente aos nossos sentimentos ao ver o filme. Facilmente nos identificamos com o protagonista porque ele age exatamente como um humano comum o faria (ou assim deveria): tendo empatia por quem aparenta precisar de socorro. E a insatisfação com a ineficiência das instituições, atrelada ao sentimento de incapacidade de poder ajudar alguém, acabam ocasionando todas as reações do policial – e as nossas também. O próprio design de som é um show à parte, algo fundamental para que possamos montar as situações ocorridas do outro lado da linha telefônica do protagonista. A obra funciona bem como suspense, mas brilha mesmo como um exercício de cinema, transformando o público em participantes ativos da história. Quanto ao Oscar, a sua premiação acabou ficando difícil tanto por sua temática, quanto pela condução, frente aos filmes apresentados numa temporada de outros bons filmes como Cafarnaum, de Nadine Labaki, Guerra Fria, de Pavel Pawikowski, Nunca Deixe de Lembrar, de Florian Henckel von Donnersmarck, Assunto de Família, de Hirokazu Kore-eda e Roma, de Alfonso Cuarón, que acabou arrebatando o Oscar 2019 de Melhor Filme em Língua Estrangeira.
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AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
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