Nelson Marques Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) e Associação Cultural Cineclube Natal e-mail: [email protected] Uma minissérie dramática de faroeste realizada em 2017, com sete episódios de cerca de 70 minutos cada um, está na programação da Netflix (os episódios oscilam entre 41 e 80 minutos). Scott Frank é o responsável pela criação, direção e roteiro. No elenco está Jack O’Connell, Michelle Dockery, Scoot McNairy, Merritt Wever, Sam Waterston, Jeff Daniels, Samuel Marty, Tess Frazer e outros. Godless tem uma estória simples que se pode contar em não mais do que três linhas: “Um bandido implacável aterroriza o Oeste à procura de um desertor de seu bando que encontrou uma nova vida em uma cidadezinha chamada La Belle habitada apenas por mulheres”. Ou mais simples ainda, exigindo apenas uma linha: “aquela série de cowboys que tem uma cidade só com mulheres”. Esse foi um trabalho de propaganda que nos bombardeou incessantemente com essa informação. Em minha opinião, e infelizmente, em uma tentativa de vender a série, justamente por seu elemento menos importante, por ser o mais artificial e menos desenvolvido. Há outros muito mais importantes, como veremos mais adiante. Posto dessa forma, assim a seco, aparentemente a série não tem nenhum atrativo. Ledo engano, pois a criação de Scott Frank, com a participação de Jeff Daniels, Michelle Dockery e Jack O´Connell é um digno representante do gênero. Mesmo contando com a participação significativa de mulheres (e também de negros), contrariando os cânones do gênero, é um dos melhores faroestes dos últimos anos. A fórmula do faroeste já é algo que perdura por muitas décadas no cinema americano. Clássico e relativamente imutável, o gênero explora sempre o século 19, envolvendo nativos americanos e os recém-chegados imigrantes europeus através de embates e duelos por terras, respeito, dinheiro, entre outros bens. Por mais que já tenha tentado atualizá-lo, Hollywood dificilmente traz novos elementos ao gênero - e é aqui que entra Godless, que mexe em um dos principais pontos do faroeste que é o fato da maioria dos personagens ser protagonizada por homens, deixando sempre as mulheres como prostitutas ou donas de casa. Outros elementos contam ainda menos. O fato de a cidade ter uma maioria de mulheres é explicado várias vezes no desenrolar do filme, seja pela conversa entre elas, seja pela presença, ou quase onipresença de uma mina dentro da cidade. A cidade teve todos os homens em idade de trabalho mortos simultaneamente em um desabamento na mina de prata que era o seu sustento econômico. Todos os habitantes remanescentes – mulheres, crianças, idosos, o xerife e seu ajudante – tentam sobreviver da forma como dá, mesmo que isso não seja muito bem explicado. Só se sabe que algumas dessas mulheres precisam tocar a vida e para isso algumas delas domesticam e vendem cavalos. Porém, por mais que esse seja um fato curioso sobre a série, não é o foco da produção. Godless acompanha, assim como a maioria dos faroestes, o embate entre dois homens: o criminoso Frank Griffin (Jeff Daniels) e seu companheiro que o traiu Roy Goode (Jack O'Connell). O vingativo Griffin promete destruir a cidade que estiver abrigando Roy, além de matar toda a sua população. Acontece de Roy encontrar refúgio exatamente na aparentemente indefesa La Belle, e, mais ainda, exatamente na fazenda de Alice. Mesmo que mantenha os tradicionais moldes do faroeste, Godless ousa ao introduzir uma dúzia de fortes personagens femininas que variam da ex-prostituta que virou professora Callie Dunn (Tess Frazer), a dona do próprio rancho Alice Fletcher (Michelle Dockery), até a maravilhosa viúva do prefeito que passa a tomar conta da cidade, Mary Agnes (Merritt Weaver, excelente no papel). Cada uma das mulheres de La Belle toma para si os trabalhos que eram de seus maridos e mantém todas as responsabilidades que já tinham. Ainda assim, para todos que olham de fora, a cidade está despreparada e desprotegida para receber e enfrentar alguém como Frank Griffin e sua gangue de mais de 30 homens - e tudo conspira contra essas mulheres. Essa é a outra ponta narrativa da minissérie: a gangue de foras-da-lei comandada pelo temido Frank que aterroriza o oeste americano em sua caçada incessante a Roy Goode, ex-integrante do grupo que, agora, perturba a gangue constantemente, para profunda irritação e desgosto de Griffin. Roy, ferido, acaba na fazenda de Alice Fletcher, nos arredores de La Belle, onde sua habilidade com cavalos o torna valioso, já que ela tem vários deles que precisam ser domados para serem vendidos. É Roy Goode, então, que faz a ponte entre as duas narrativas que, porém, andam em paralelo ao longo de toda a minissérie, convergindo para o óbvio e mais do que esperado tiroteio final somente no último episódio. Mas, até aí, não há problema algum. De certa forma, olhando por alto, a coisa parecia que funcionaria assim até o fim. E isso especialmente se considerarmos que é Roy Goode o efetivo protagonista, o super-herói unidimensional de faroestes de outrora que não só é encantador de cavalos, como também um pistoleiro sem igual e um homem que, apesar de ter vivido anos em meio a bandoleiros assassinos, tem coração bom ao ponto de quase adotar Truckee (Samuel Marty), filho de Alice, como seu próprio filho. Com isso traz à nossa lembrança, um dos grandes clássicos do faroeste, “Shane” (“Os brutos também amam”), de George Stevens, realizado em 1953, com Alan Ladd e Jean Arthur. Em termos gerais, e/ou mais técnico, Godless tem mais o que mostrar. A fotografia é muito bonita, muito em razão do uso de filmagens em plano geral de locações que deixam clara a desolação da fronteira americana nesse período. A bela linguagem de cores separa o presente do passado, com transições para o passado com filtro em preto-e-branco que deixam apenas transparecer cores aqui e ali. Essas cenas dão o contexto necessário para entendermos exatamente quem são aquelas pessoas. Além disso, as atuações de Daniels, Waterson, Bobb, McNairy e Brodie-Sangester merecem elogios, assim como as de Wever, Harvey e Morgan. Todos eles acabam valorizando sobremaneira a minissérie. Godless é uma bela obra que atualiza o faroeste sem mexer muito na essência que o torna um clássico. Com excelentes personagens, uma trama interessante e um visual arrebatador, a produção foi uma das melhores de 2017.
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AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
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