*Crítica spoiler free de O Lar das Crianças Peculiares.
É uma tarefa difícil para mim falar de Tim Burton, mais especificamente criticar um trabalho seu. Indubitavelmente, sua visão extraordinária do mundo deixou uma marca indelével nos corações e mentes de inúmeras crianças “peculiares” ao redor do globo, eu incluso. Seus universos bizarros e personagens adoravelmente estranhos sempre foram um porto seguro para os “diferentes”, encorajando-nos a abraçar e desenvolver nossas idiossincrasias. Ver a beleza no feio tornou-se o mantra de uma geração. Tim Burton, indiscutivelmente, virou uma marca. O sucesso comercial por ele alcançado em Batman lhe deu raro prestígio perante os estúdios para filmar praticamente qualquer maluquice que lhe viesse à mente. Entretanto, na medida em que o sucesso de sua estética tornou-se aleatório, não raro dependente do quão perturbador o roteiro era para as massas, Burton viu-se claramente num dilema faustiano: manter sua visão original ou adequar seu estilo ao gosto popular, fazendo concessões. A escolha se tornou clara na última década. Desde Alice no País das Maravilhas, Tim Burton vem cada vez mais aguado. Cumprindo a barganha, sua estética se mantém intacta. Porém, como num vaso parnasiano, apenas o exterior importa: frequentemente a abordagem superficial da estranheza das histórias que tão brilhantemente ilustra diminui o seu gênio. Não, barateia. Enamorado de seus temas visuais, Burton virou um artista raso, preocupado em demasia com forma em detrimento de substância. E o público percebeu. Filme após filme, em parcerias desgastadas com Johnny Depp e Helenna Bohan Carter, Tim Burton continuou tecendo sua teia fantástica com inequívoca destreza. Porém, se antes a assertiva de que um filme “é de Tim Burton” gerava excitação, hoje as plateias usam a frase com estrondoso tédio. É importante fazer essa retrospectiva da carreira de Tim Burton para analisar o seu mais recente filme, O Lar das Crianças Peculiares, adaptação do sucesso literário de Ransom Riggs. A fantasia gótica, ilustrada com fotografias pseudo-reais de seus extravagantes personagens, parece ter sido escrita para Tim Burton adaptar às telas. Com as bênçãos do autor, a Fox entregou o projeto a Burton, sob a condição de que fizesse um filme não só com sua marca, como também palatável ao público em geral. A Fox quer um filme de sucesso baseado num trabalho literário altamente autoral. Conseguiria Tim Burton fazê-lo sem sacrificar a qualidade do filme? Quase. Na verdade, diria que ele chegou muito perto. A produção do filme já dava indicativos de que o diretor, ciente do declínio da qualidade de seus trabalhos mais recentes, procurava quebrar o belo molde gótico. Fora estavam Depp e Carter, além de seu compositor por excelência, Danny Elfman. Entra um elenco eclético, liderado por um crescido Asa Butterfield e pela bela Eva Green, que cumprem muito bem seus papéis, além dos experientes Terence Stamp e Samuel L. Jackson. Não é por acaso que a Fox comprou os direitos autorais do livro. Há de lembrar que o estúdio é a casa da franquia X-Men e, muito embora não seja assim oficialmente categorizado, O Lar das Crianças Peculiares é basicamente um filme de super-herói, entretanto, povoado não com o tipo de personagens que nos acostumamos nesse gênero, mas sim um grupo de crianças perdidas, que não querem proteger o mundo e sim serem salvas dele. A adaptação do livro foi feita por Jane Goldman, que já roteirizou o bem sucedido X-Men Primeira Classe. Não é uma adaptação perfeita. Muitas vezes o roteiro é excessivamente tolo e cheio de buracos na narrativa, mas ao mesmo tempo, possui temas profundos, como alienação parental, perdas pessoais, primeiro amor, solidão, envelhecimento, mortalidade e família – seja biológica, seja escolhida. Os fãs da obra literária reclamaram de algumas alterações, especialmente na troca de poderes entre as personagens Emma e Olive. Tendo lido o primeiro livro, não acho que foi um problema. O que incomoda é o pouco tempo de tela dispensado às demais crianças peculiares em detrimento de Emma, o interesse romântico de Jake, o personagem principal. Mas é compreensível, vez que a trama urge em se desenvolver com rapidez. E mesmo assim, Burton, nas breves cenas em que explica a mecânica das peculiaridades de cada um dos órfãos, algumas grotescas, diga-se de passagem, consegue fazer com que nos importemos. E a pergunta fica em nossas mentes: como suportar o fardo da diferença? E o filme responde através da construção da relação de Srta. Peregrine com suas crianças. Eternamente presos na brecha tempo-espaço criada por ela para proteger o orfanato dos perigos da Segunda Guerra Mundial, a personagem de Eva Green age não apenas como mera preceptora. Na ausência de outros familiares e afastadas do mundo hostil, a Srta. Peregrine é um verdadeiro arquétipo maternal. O roteiro acerta em cheio na relação dela com as crianças peculiares, permeado por cuidado, compreensão e amor em cada cena. Tudo se torna mais pungente quando consideramos que o looping temporal criado pela Srta. Peregrine impede a todos de envelhecerem. Todas as crianças assim permanecerão. Para sempre. Claro que esse senso de imutabilidade – e segurança – é colocado em cheque com a chegada de Jake e os vilões do filme, chamados de Etéreos, criaturas monstruosas, invisíveis, que absorvem os peculiares para alcançarem forma humana e vida eterna – impossível não fazer a relação com Lorde Voldemort. Muito embora esta resenha não se preste a analisar detalhes da história, podemos dizer que a imortalidade e suas consequências é um tema comum tanto ao núcleo dos mocinhos como dos vilões. É uma abordagem moderna da lenda de “Peter Pan”. Qual é o preço a se pagar pela eternidade? Quando tira do caminho a obrigatória explicação dos elementos básicos da trama, que envolve até viagem no tempo, Tim Burton nos agracia com momentos frequentes de sua maestria. O Lar das Crianças Peculiares é cheio de referências, muitas delas ao próprio trabalho de Burton, como Edward Mãos de Tesoura e Beetlejuice. O design dos etéreos lembra um Jack Skellington distorcido. Há momentos em que o filme remete até mesmo a Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas. Pescar esses detalhes é muito divertido para os admiradores do diretor. Mas é importante mencionar que esses elementos em comum com outros de seus trabalhos não deixam a impressão de autobajulação: mais parecem tentativas do diretor de lembrar a si mesmo de suas melhores “peculiaridades”. Há diálogos deliciosamente inteligentes, geralmente entregues pela Srta. Peregrine, emoldurados por uma direção de arte exuberante e efeitos especiais competentes, que misturam computação gráfica e stop motion, cuja epítome é a cena da batalha dos esqueletos, explícita referência ao filme Jasão e os Argonautas, clássico do pioneiro da animação Ray Harryhausen. Há muito mais do espírito de Burton aqui do que em A Fantástica Fábrica de Chocolate e Sombras da Noite, por exemplo. Tudo é perfeito? Infelizmente não. A única parceria recorrente de Burton que aqui faz falta é aquela com o músico Danny Elfman. A trilha sonora de O Lar das Crianças Peculiares oscila entre o genérico e o desconcertante – de um jeito ruim. Apenas as canções originais funcionam em meio a essa esquizofrenia sonora. O roteiro também é problemático, vez que ávido em agradar a “todos os públicos”, confere a Samuel L. Jackson a triste missão de recitar algumas piadas duras de roer, que quase estragam sua curiosa performance, oscilante entre o terror e o humor negro. Olha aí o pacto cobrando seu preço. Mas o saldo é positivo e Tim Burton começa o processo de fazer as pazes consigo mesmo e com seu público cativo. O final do filme é autossuficiente e não dá pistas se os outros dois livros da série serão adaptados. Obviamente, essa sorte depende da bilheteria do longa. Torçamos para que ela seja o que o estúdio almeja. Eu pessoalmente gostaria de assistir a essas crianças peculiares crescerem. Deus sabe que o mundo precisa muito do escapismo de Burton. por Gianfranco Marchi
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AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
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