Confesso que não queria ir ver Meu Amigo, o Dragão. Achei o trailer excessivamente sentimental, mas meu filho queria muito conferir o filme. Diante do impasse, eu e ele fizemos um acordo: se ele fosse comigo para a estreia de O Lar das Crianças Peculiares, filme que ele, por sua vez, não queria assistir (a ironia!), no dia seguinte teríamos um encontro com o Elliot, o dragão. Assim foi feito e devo dizer: eu estava errado nas minhas impressões.
Os dez primeiros minutos de Meu Amigo, o Dragão caem como uma bomba atômica no espectador. A abertura do filme é esteticamente bela, porém cruel. O menino Pete, de cinco anos, é mostrado com os pais dentro do carro da família, seguindo numa estrada em meio a uma densa floresta quando, durante um doce diálogo com a mãe, o veículo abruptamente vira. Numa sequência poética, a câmera lenta foca sua atenção na criança, enquanto seu mundo, literal e figurativamente, vira de cabeça para baixo. Bom. Não é o que se espera de um filme da Disney. Ou é? Na verdade, grandes clássicos do estúdio são construídos a partir de perdas familiares. De Bambi a O Rei Leão, a morte de um ou ambos os pais, consiste no evento transformador do personagem e da história. Aqui, o diretor David Lowery segue essa tradição no melhor estilo. O garotinho Pete, agora órfão, adentra as profundezas da floresta e é salvo de uma matilha de lobos por uma improvável e amigável criatura: um dragão verde peludo. A partir daí, fazem amizade e vivem grandes aventuras, alheios aos perigos do mundo. A premissa é a mesma do filme da Disney de 1977, mas sejamos honestos; o original, mistura de live-action com animação tradicional, nunca foi considerado um clássico do estúdio e o fato é que não resistiu bem ao tempo. Portanto, Meu Amigo, o Dragão consiste no material perfeito para uma releitura, esta tendência que a Disney vem seguindo com algumas de suas propriedades intelectuais mais conhecidas, como Cinderela e O Livro da Selva. A diferença aqui, e isso funciona maravilhosamente a favor do remake de Meu Amigo, o Dragão, reside justamente na circunstância de o original não ser um filme perfeito. Ao compreender exatamente os pontos fortes e fracos da obra setentista, diretor e roteirista puderam tomar liberdades necessárias e que servem perfeitamente à história. E por falar em história, voltemos a ela. Depois da apresentação inicial de Pete e seu novo amigo, o menino o batiza de Elliot, tal qual o cachorrinho do livro infantil que o garoto lia no momento do acidente, o único bem material que guarda consigo nesta nova vida de “aventuras”. A narrativa então avança abruptamente seis anos. Pete, agora com onze anos, é um verdadeiro Tarzan pré-adolescente, feliz com sua existência harmônica não só com o dragão Elliot, mas com a floresta. Estabelecer essa vida idílica é importante frente ao contraponto que vem a seguir. A civilização avança cada vez mais para dentro da floresta, colocando em risco não só a existência do menino, como também a do dragão verde. Não existe lugar para a mágica no concreto. E a humanidade se apresenta para Pete em duas faces opostas: a maternal guarda florestal, interpretada por Bryce Dallas Howard, e o personagem de Karl Urban, ambicioso empreiteiro cuja motivação é desmatar o quanto puder da floresta em prol de reconhecimento pessoal e, claro, de lucro. Mais uma vez o filme explora contrastes, mas não é possível dizer que exista aqui um “vilão”. O aparente maniqueísmo do filme emana da visão de Pete desse novo mundo, de sua total inocência e falta de compreensão de conceitos como prestígio e dinheiro. Mas o contato com a humanidade incute no coração do menino um desejo incompatível com sua amizade incomum. Pete precisa de uma família. Ele anseia por uma mãe. É interessante que, por mais bem estabelecida que seja a relação mágica de Pete com Elliot, desde o primeiro encontro com a guarda florestal, a criança a vê com encantamento. Para Pete, em sua realidade, ela é mais fantástica e mítica do que seu dragão. A maneira com que a câmera do diretor enquadra Bryce denota essa perspectiva. A atriz aparece sempre etérea, impossivelmente bela, enfim, como toda mãe é vista por seu filho. Revela-se, portanto, o tema central de Meu Amigo, o Dragão. Amor maternal. Afora as cenas com o dragão Elliot, que são muitas e brilhantemente construídas através de CGI, as melhores partes do longa são aquelas em que Grace e Pete fazem coisas ordinárias como mãe e filho. E dentro desse cenário todos entendem – inclusive Elliot – que não há espaço para um dragão – por mais fofo que ele seja. A possibilidade de uma família de verdade se contrapõe à magia da vida na floresta. Mas Pete deseja ter o melhor dos dois mundos e lutará por isso, em sequências que remetem às grandes fugas de amigos do cinema, que vão de E.T. – O Extraterrestre a Free Willy, contando até mesmo com a ajuda de Robert Redford, num papel inócuo, porém digno. Não se preocupem. Tudo ficará bem, mas a beleza deste filme não está no final propriamente dito – arquitetado para fazer chorar mesmo. Ela reside na jornada até lá. Tal qual o livro infantil que Pete lê obsessivamente, o foco é o próprio caminho do cãozinho Elliot de volta pra casa. Assim, o que mais satisfaz em Meu Amigo, o Dragão é a fluidez de seus momentos, o tempo que corajosamente usa sem um diálogo sequer, as nuances de humor e as particularidades de suas imagens e sons. Numa época em que estúdios fazem filmes de altíssimos orçamentos com preocupações mercadológicas bem definidas, contabilizando as obrigatórias explosões e romances forçados para agradar as demografias “XY” e “XX”, Meu Amigo, o Dragão convida o espectador para que preste atenção no grande poder emocional que existe em apenas ver uma cena. E vejam o dragão Elliot não como um efeito especial, e sim como uma criatura viva. Sua textura, peso e presença física são maravilhas cinematográficas tanto de design como de bom gosto. Ele é um dragão, sim, mas com poderes limitados – um dragão vulnerável que tenta proteger seu melhor amigo, o próprio sentido de sua existência, uma mera criança humana. A simbiose entre ambos é tocante. Meu Amigo, o Dragão conjura o poder primordial dos contos fantásticos. Não é sobre o que significaria a descoberta da existência de dragões no mundo real, mas sim como seria ver um deles, viver com eles. O filme respeita as fronteiras e regras do elemento fantástico – essência da arte – até mesmo as medidas desta. Como nos sentiríamos vivendo num mundo em que, de fato, um dragão existe? Ao lançar a indagação para a plateia, esta a lança de volta ao filme, atestando um experimento cinematográfico cujo objeto não é o jovem Pete e sim o próprio diretor. Lowery forjou um mundo de suas impressões mais íntimas com uma realidade cognitiva familiar, no qual vive Elliot. É menos um conto de fadas e mais um registro das experiências pessoais do diretor, extraídas na forma de imagens visíveis a todos. E isso, amigos, é verdadeira mágica. Mas você deve estar se perguntando o que os Beatles do título têm a ver com a resenha do filme. Explico. Meu Amigo, o Dragão deixou uma impressão tão grande no meu pequeno cinéfilo que, alguns dias depois de termos visto o filme, quando se preparava para dormir ao som de "Penny Lane", sua canção favorita, ele confidenciou à minha esposa: “Mamãe, eu gostaria que os Beatles ainda existissem... e os dragões também”. Mas eles existem, filho. Eles existem. por Gianfranco Marchi
0 Comments
Leave a Reply. |
AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
Categorias |