Nelson Marques Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) e Associação Cultural Cineclube Natal e-mail: [email protected] Deparei-me, recentemente, com declarações de algumas pessoas, atores e atrizes, que conviveram, em diferentes momentos, com um dos meus ídolos no/do cinema, o cineasta Stanley Kubrick. Muitas delas me surpreenderam, negativamente, em seus aspectos humanos. Dentre elas, chamaram a minha atenção o que foi dito por Malcolm McDowell, Shelley Duvall, Jack Nicholson e por Kirk Douglas. Para minha surpresa, frente ao "monumento" criativo e artístico chamado Kubrick, McDowell disse, em uma de suas entrevistas, "que considerava Stanley Kubrick brilhante e extraordinário, mas que ele sempre desempenhou mal o papel de ser humano". Segundo ele também, diz que trabalhar com Kubrick em "Laranja Mecânica" "foi insuportável e brutal demais". Malcolm em uma de suas entrevistas relata que ele e Kubrick passaram mais de nove meses assistindo filmes violentos todos os dias, antes de começar a filmagem, preparando o espírito para o que viria mais à frente. Teve uma frustração muito grande também por ter sido enganado por Kubrick em questões financeiras. Este prometeu, antes das filmagens, que McDowell receberia US$ 100.000 dólares e mais 2,5% da arrecadação da bilheteria. Acordo esse que nunca foi honrado. Também é conhecido o fato de que Kubrick não tinha muitos limites durante a filmagem de seus filmes. No set de "2001 - Uma Odisseia no Espaço", o dublê Bill Weston correu perigo ao ficar em ambiente com privação de ar. O diretor preferiu continuar filmando, em vez de acudir e parar a filmagem (Michael Benson, "Space Odyssey: Stanley Kubrick, Arthur Clarke, and the Making of a Masterpiece", 2018). Em outros episódios, como na filmagem de "O Iluminado", para conseguir uma melhor "performance", Kubrick pressionava Shelley Duvall e Jack Nicholson o tempo todo. A atriz, com quem Kubrick não parava de gritar, ficou traumatizada por anos, como ela conta numa entrevista à revista "Rolling Stone" de julho deste ano. Em "Spartacus", ainda, não se sabe hoje se o estranhamento que houve com as principais estrelas do filme, Laurence Olivier, Charles Laughton e Peter Ustinov se deveu à questão da pouca idade de Kubrick à época (30 anos), ou algo mais que não ficamos sabendo. Esse é também um fato bem conhecido. São palavras duras e contundentes que juntadas a outros depoimentos podem ter muito de verdade, como pode ser referendado igualmente por Kirk Douglas no primeiro volume de sua autobiografia "The Ragman's Son. An Autobiography" (Simon & Schuster, 1988), publicada também no Brasil (" O Filho do Trapeiro", Ed. Civilização Brasileira, 1989). O caráter pessoal do genial diretor ficou, para mim, um tanto abalado por esses fatos e outros que comentaremos mais à frente. Todos tiveram testemunhas e são consistentes entre si. Além disso, como comentamos acima, Kubrick é conhecido por ser bastante bruto ao comandar um filme. [Stanley Kubrick foi cineasta, roteirista, produtor e fotógrafo, tendo nascido em Manhattan, New York, EUA, no dia 26 de julho de 1928. Morreu, aos 70 anos, no dia 7 de março de 1999, em Childwickbury Manor, no Reino Unido. Os seus filmes são conhecidos por seu realismo, pelo humor sombrio, muitas vezes, por uma cinematográfica única com extensos cenários e pelo uso evocativo da música. Dentre os seus filmes destacam-se: "Lolita", 1962; "Dr. Fantástico", 1964; "2001 - Uma Odisseia no Espaço", 1968; "Laranja Mecânica", 1971; "Barry Lyndon", 1975; "O Iluminado", 1980; "Nascido para Matar", 1987 e "De olhos Bem Fechados", 1999. No total, foram 13 longas (o primeiro, em 1953, "Fear and Desire") e 3 curta-metragens ("Flying Padre", em 1951, e o último em 1953, "The Seafarers").] Kirk Douglas se interessou por Stanley Kubrick a partir de seu filme "The Killing", realizado em 1956, quando Kubrick tinha 28 anos. Tiveram duas colaborações em projetos bastante diferentes entre si, seja pelo tipo de roteiro, seja pela produção propriamente dita. O primeiro dos projetos foi em 1957, com o filme "Paths of Glory". O segundo foi o magistral "Spartacus", em 1960. Em ambos houve problemas envolvendo questões éticas e morais. Estas, associadas a diferenças criativas decorrentes de seu trabalho com Douglas e com os estúdios de cinema, além de uma aversão, por parte de Kubrick, à indústria de Hollywood, bem como uma crescente preocupação com a violência e o crime nos EUA, fizeram com que Kubrick se mudasse para o Reino Unido em 1961, onde passou a maior parte do resto de sua vida e de sua carreira. [Kirk Douglas, ou melhor, Issur Danielovitch Demsky, nasceu em 9 de dezembro de 1916, na cidade de Amsterdam, em New York, EUA, de pais judeus muito pobres. Ele faleceu aos 103 anos no dia 5 de fevereiro de 2020, em Beverly Hills, Califórnia, EUA. Desenvolveu atividades de ator (94 filmes, de 1946 - "The Strange Love of Martha Ivers", a 2008 - "Empire State Building Murders"), produtor (30 filmes, 1955 a 1986), cineasta (2 filmes, "Scalawag", 1973 e "Posse", 1975), roteirista (2 filmes, "Scalawag" e "Kirk Douglas: Before I Forget", 2009, um documentário) e escritor (12 livros), durante mais de 70 anos (só no cinema foram exatamente 63 anos!). Trocou de nome, oficialmente, para Kirk Douglas, quando foi para a Marinha Americana, onde serviu de 1941 a 1945, durante a Segunda Guerra Mundial. Ele é considerado um dos grandes atores da era de ouro do cinema americano e um dos melhores atores da história do cinema. É pai dos atores Michael Douglas e Eric Douglas e do produtor Joel Douglas. Kirk recebeu 3 indicações ao Óscar, como melhor ator pelos filmes "Champion" (1949), "The Bad and the Beautiful" (1952) e "Lust of Life" (1956). Não ganhou nenhum deles. Recebeu, no entanto, um Óscar Especial em 1966 por "50 anos de modelo moral e criativo para a comunidade cinematográfica", entregue por Steven Spielberg. Teve ao longo de sua carreira de produtor mais 22 indicações para premiação, recebendo 32 diferentes prêmios.] Tendo em vista agora o percurso reflexivo ao longo de toda a sua vida, principalmente com os vários volumes de sua autobiografia (5 no total), podemos entender quanto que aqueles acontecimentos passados devem tê-lo afetado profundamente. É importante dizer também que nunca mais voltaram a trabalhar juntos. Podemos começar do início do relacionamento pessoal entre Kubrick e Kirk. Vimos que a iniciativa de se aproximar de Kubrick, em 1957, partiu de Douglas em função do impacto que recebeu do trabalho de Kubrick no filme "The Killing", de 1956. Kubrick apresentou a ele o roteiro de "The Paths of Glory", que criticava a postura arrogante do Alto Comando Francês na 1a. Guerra Mundial, que levou milhões de soldados à morte inútil. Kirk leu o roteiro e se interessou, mas dizendo a Kubrick que provavelmente não renderia nada. Mas, mesmo assim queria realizá-lo. Douglas, a duras penas conseguiu uma associação com a United Artists para filmá -lo, pois o roteiro foi considerado não comercial. Voltando a falar com Kubrick, antes das filmagens, ele descobre que haviam mudado o roteiro. Os diálogos foram alterados para pior, o final foi tornado mais palatável com o fuzilamento sendo detido no último momento, e o personagem de Douglas tinha que fazer as pazes no final com o general vilão. Kirk perguntou a Kubrick quem havia violentado o roteiro daquele jeito. Kubrick respondeu: - Fui eu. Douglas, surpreso, ainda perguntou... por quê? E ele, candidamente, respondeu que era para torná-lo mais comercial... pois ele queria ganhar dinheiro. Douglas ficou horrorizado e exigiu a volta ao roteiro original, ou não haveria filme. O que foi feito. Durante as filmagens, Kubrick mandava fazer dezenas de placas onde se lia "Harris-Kubrick" (James Harris foi um dos investidores e era sócio de Kubrick). No entanto, a produtora real era a Bruna Company de Douglas. Kirk não ligou muito à época, mas ficou sabendo anos depois que havia mais, pois Kubrick dizia durante as filmagens a todos da equipe que o verdadeiro produtor era ele e que Douglas era seu empregado. O pior, no entanto, ainda estava por vir e aconteceria com a produção de "Spartacus", em 1960. Foi uma nova produção de Douglas com Kubrick. O roteiro do filme, um roteiro genial baseado no livro homônimo de Howard Fast, era de Dalton Trumbo, cujo nome estava na "lista negra" do macartismo há anos. Uma boa parte dos escritores e roteiristas nessa época só podiam trabalhar com testas-de-ferro, ou pseudônimos (como Woody Allen explora isso muito bem, como ator, no filme de Martin Ritt "Testa de Ferro por Acaso", de 1976). Mesmo que o macartismo já estivesse enfraquecendo nessa época, nenhum grande estúdio ousava romper com o sistema e confrontar a famigerada "lista negra". Foi nesse momento que Kirk fez uma reunião para decidir o nome do roteirista que apareceria nos créditos. Discutiu-se se deveriam usar o nome de um roteirista da MCA/Universal (como se fazia habitualmente) que participava da reunião, Eddie Lewis. Este recusou. Pensou-se num nome fictício, ou seja, teriam que inventar mentiras (como habitualmente se fazia, até então), quando todo mundo sabia que o autor do roteiro era Trumbo. Foi quando Kubrick resolveu intervir, propondo a solução: "... que botassem o nome dele". Kirk e Eddie teriam se entre-olhado chocados e Douglas conta que perguntou a Kubrick se ele não se sentiria constrangido em colocar seu nome num roteiro escrito por outra pessoa. Ele teria olhado como se não houvesse entendido do que Douglas falava e confirmado que não, que teria muito gosto em assumir o crédito. Isso acabou encerrando a reunião. Kirk e Eddie decidiram, então, arriscar-se e bater de frente com a "lista negra" colocando o nome de Dalton Trumbo como roteirista nos créditos. Dalton entrou abertamente num estúdio pela primeira vez depois de dez anos e agradeceu Kirk por ter sido o primeiro a rasgar a "lista negra". Pouco depois a coisa se tornava irreversível quando Otto Preminger telefonou para Douglas depois da decisão ter se tornado pública, para confirmar se ele ia mesmo se arriscar e colocar o nome de Trumbo na tela e, após a confirmação, deu entrevista à imprensa para anunciar que Dalton Trumbo seria, também, o roteirista de seu próximo filme, "Exodus", baseado no livro homônimo de Leon Uris. Não houve maiores consequências depois desses atos que, para a época, foram heróicos e muito importantes. Mesmo que a era macartista no cinema, depois de 10 anos de terror, permanecesse mais por inércia e pusilanimidade, do que medo e subserviência, pois Joseph McCarthy (1908-1957) já estava desmoralizado, mas ninguém, até então, queria ser o primeiro a denunciar e acabar com a "lista negra". Esses acontecimentos todos podem ser acompanhados nas palavras do próprio Kirk Douglas em dois de seus livros autobiográficos. O de 1988, "O Filho do Trapeiro" e o de 2012, "I Am Spartacus: Making a Film, Breaking The Black List". Inclusive neste, Kirk diz claramente que a opção de reabilitar Dalton, através de uma jogada já com cartas marcadas, foi a mais importante da sua longa carreira no cinema. Reafirmou essas palavras publicamente ao receber em 2012, aos 84 anos de vida, o prêmio "Urso Honorário" no Festival de Cinema de Berlim. A época de McCarthy foi uma das etapas mais sombrias do cinema americano. A caça às bruxas, com alegações de atividades anti-americanas, durante 10 anos seguidos, destruiu muitas vidas e carreiras. [Dalton Trumbo, nasceu em 9 de dezembro de 1905, em Montrose, Colorado, EUA, e morreu em 10 de setembro de 1976, em Los Angeles, Califórnia, aos 71 anos. Foi escritor e roteirista de 70 filmes (ganhou três Óscares por eles, "Kitty Foyle" 1940, "Roman Holiday", 1953 e "The Brave One", 1956; ganhou o Golden Globe e a Palma em Cannes, ambos em 1971, por "Johnny Vai À Guerra"), atuou em 3 filmes ("Papillon, 1973, Johnny Got His Gun, 1971 e The Prowler, 1951) e dirigiu em sua vida um único e marcante filme "Johnny Vai À Guerra (Johnny Got His Gun)", em 1971. É um filme trágico, escuro, uma "sátira" anti-guerra e um dos mais comoventes manifestos do cinema contra o absurdo da guerra.] Kirk Douglas, mesmo com os acontecimentos ruins acontecidos entre ele e Stanley Kubrick, nunca parou de amar o que fazia. A sua dedicação ao cinema é algo que sempre chamou a atenção de colegas, amigos e mesmo de adversários. Tendo realizado o seu primeiro filme em 1946, trabalhou atuando e produzindo durante 62 anos! Seu último filme "aconteceu" em 2008, "Empire State Building Murders", de William Karel, feito para a TV americana. Kirk, mesmo com uma série de problemas físicos e de saúde, nunca parou o seu ritmo de vida e profissional. Precisou desacelerar, apenas, algumas vezes, em razão de eventos que alteraram enormente a sua rotina de vida. Em 1991, ficou ferido, com queimaduras muito sérias, num acidente de helicóptero em Santa Paula, Califórnia, que foi abalroado por um avião. Ficou muito chocado pela morte dos dois pilotos, muito mais jovens que ele. Em 1996, sofreu um derrame que afetou seriamente sua fala. Precisou de fisioterapia e fonoaudiologia por anos para aprender a falar novamente. Enquanto isso, escrevia mais reflexões sobre si e a sua vida. Em 1997, o segundo volume de suas memórias, "Climbing the Mountain: My Search for Meaning", em 2002, "My Strokes of Luck", em 2007-2008, "Let's Face It: 90 Years of Living, Loving and Learning" e finalmente o quinto em 2014, "Life Could Be Verse: Reflections on Love, Loss and What Really Matters". Mesmo com certa dificuldade de locomoção e deslocamentos, após o derrame que havia sofrido em 1996, teve ainda dois surpreendentes retornos. O primeiro foi em 2009 quando, aos 92 anos de idade, sobe ao palco para interpretar "Before I Forget', um monólogo de 90 minutos que ele mesmo escreveu sobre a sua vida. Ainda realizou um documentário sobre essa "performance" (direção de Jeff Kanew). O segundo foi em 2011 para a cerimônia da 83a. edição do Óscar, na entrega do prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante a Melissa Leo. Ele, junto com ela, foi uma das aparições mais marcantes da noite. Mesmo com certa dificuldade para articular as palavras, o seu bom humor e simpatia aos 94 anos, encantou a todos, incluindo Melissa, que havia ganho o prêmio pelo filme "The Fighter - O Vencedor", ao ser abraçada por Kirk. Como síntese do que vimos até aqui aqui, só posso concluir que qualidades de caráter e competência técnica e talento artístico nem sempre andam necessariamente juntos. Infelizmente. Para aqueles interessados em se aprofundar nas questões discutidas aqui há biografias e livros sobre um e outro disponíveis. Sobre Kubrick há o livro de David Mikics ("Stanley Kubrick - An American Filmaker", Yale University Press, 2020, 248 p.). Mikics se interessa menos pela vida pessoal de Kubrick (o que é uma pena) e mais sobre a sua filmografia, convenientemente ordenada de forma cronológica. É um bom livro para se ter uma vista geral de Kubrick e seus filmes. Há um outro livro, escrito em 2008, de Alison Castle, como editor, e Jan Harlan e Christiane Kubrick como autores em que exploram os arquivos de Kubrick - "The Stanley Kubrick Archives" (Taschen, 544 p.). Mais sobre Kubrick pode ser encontrado no livro "Stanley Kubrick: A Biography", de Vincent LoBrutto, Da Capo Press, 1999, 606 p. e no livro "Stanley Kubrick O Monstro de Coração Mole", de Marcius Cortez edição da Editora Perspectiva lançada em 2017 (com 216 p.). Sobre Kirk Douglas, que acabou sendo um bom escritor também, há 12 livros de lavra própria, entre reminiscências, autobiografia(s) e até um livro para o público juvenil. São cinco autobiografias (com diferentes propósitos e épocas diferentes), três novelas ("Dance with The Devil", 1990, "The Gift", 1992 e "Last Tango in Brooklyn", 1994), um infantil ("The Broken Mirror: A Novella", 1999), e três outros, de gêneros variados ("Young Heroes of Bible", 1999; "I Am Spartacus: Making a Film, Breaking The Blacklist", 2012; "Kirk and Anne: Letters of Love, Laughter, and a Lifetime in Hollywood", 2017, uma "autobiografia" do casal com mais de 60 anos de convivência, casados desde 1954). Há também os livros de Mário Abbade e Tony Thomas. O primeiro, "O Último Durão, O Centenário Kirk Douglas", escrito em 2016, foi publicado pela Editora Mario Abbade Neto. Tem 128 p. O segundo, "Kirk Douglas, Una Estrela Singular", foi publicado na Espanha pela T & B Editores, em 2003 e tem 248 p.
Em termos de reflexões pessoais, Kirk Douglas começou com aquela autobiografia de 1988, já referida, e continuou de forma relativamente regular até 2017, com o livro escrito em conjunto com sua mulher, Anne Buydens Douglas. Depois de 1988, ele escreveu em 1997, "Climbing the Mountain: My Search for Meaning", uma caminhada reflexiva para a espiritualidade e a retomada de sua identidade judia, "ouvindo" a voz do pequeno Issur que ainda vivia dentro de si. É uma autobiografia franca, escrita de forma carinhosa (Simon & Schuster, 269 p.). Em 2002, continuou com "My Strokes of Luck", com reflexões sobre a sua vida depois do ataque cardíaco sofrido em 1995, "Let's Face It: 90 Years of Living, Loving and Learning", de 2007-2008, encerrando em 2014 com "Life Could Be Verse: Reflections on Love, Loss and What Really Matters", continuando o mergulho em suas raízes judias.
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AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
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