Gianfranco Marchi Cineclube Natal e ACCiRN – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte e-mail: [email protected] O média metragem “Merda!” (2018), do diretor potiguar Paulo Henrique Borges, pode causar ao espectador mais incauto a mesma estranheza que leva aos ouvidos leigos desconhecedores do jargão teatral que lhe batiza: certamente é uma obra intrinsecamente dicotômica. O diretor abre seu filme com trecho de entrevista tipicamente documental, artifício que descobriremos irá pontuar as sequências ficcionais, nos trazendo ponderações de personalidades sobre a natureza do teatro. É interessante notar que tal qual a palavra “merda”, que possui no meio teatral significado distinto daquele comumente utilizado, o média metragem possui, também, uma natureza ambígua em sua forma, mesclando as linguagens de documentário e ficção, de modo a construir sua narrativa. De modo geral é bem-sucedido, considerando que as colocações poéticas sobre a vida no teatro contrastam com a estória ficcional contada. O cotidiano dos atores, assistente de direção e diretor de teatro retratados parece muito menos glamoroso do que os monólogos abstratos e às vezes transcendentais de seus entrevistados. O teatro, como arte, é divinamente humano. E seu processo de criação, como mostrado no filme, nem sempre é movido pelos sentimentos mais nobres. De um lado temos o assistente de direção egocêntrico, numa necessariamente caricata interpretação do conhecido ator Henrique Fontes. De outro, o diretor decadente que se acha mais relevante do que realmente é. E, ao fundo, uma trupe de atores aspirantes que tentam, na arte teatral, encontrar seus rumos na vida. Ninguém é perfeito, entretanto, nada os impede de montar algo que abstratamente o é – a peça é ovacionada de pé pelo público, muito embora não saibamos ao certo do que se trata. Aqui o que importa ao filme é o processo artístico do teatro, não seu produto final. Essa humanização dos bastidores do teatro já rendeu grande cinema: filmes como “Noite de Estreia” e o mais recente “Birdman” estão mais interessados nos dramas pessoais por trás das cortinas do que naquilo que se faz realmente no palco. Outras produções, como “Chorus Line” e “O Show Deve Continuar”, têm prazer em escancarar as picuinhas internas que muitas vezes movem aqueles que vivem dos palcos. Decerto é um material rico e é nessa dicotomia que o média de Paulo Henrique Borges encontra sua voz. A fotografia em preto e branco dá ao filme esse clima de bastidores. A câmera se move como um paparazzi, nos dando relances das imperfeições da trupe. Bons atores nem sempre são boas pessoas. E atores medíocres podem ser pessoas excepcionais, geralmente engolidos pelos egos das estrelas. Nesse aspecto encontramos ecos do clássico “A Malvada”, que lança um olhar crítico sobre as grandes divas do teatro – e até mesmo cidades pequenas como Natal as têm, definitivamente. As atuações são competentes e há o claro destaque para o assistente de direção interpretado por Henrique Fontes, talvez o personagem melhor idealizado no filme. Seus maneirismos e excentricidade refletem bem os excessos do meio, entretanto, há algo de terno em sua figura. Não obstante use os atores para fins egoísticos e os trate com desprezo, fica difícil antipatizar com ele, especialmente quando fica tão exultante com o relativo “êxito” da peça porcamente ensaiada. O mesmo não se pode dizer da figura do diretor, vivido por Pedro Queiroga, que se apresenta apenas como oportunista e decadente, havendo falha no média em estipular melhor suas motivações - afora as financeiras.
Os demais atores são adoravelmente amadores. Alguns melhores que outros – da mesma forma que na própria estória contada – mas isso não importa. Na verdade, eles devem ser analisados sob uma ótica única, que compõe a trindade ator/assistente de direção/diretor estipulada por Paulo Henrique Borges. No geral, as interações entre os atores e atrizes são corretas e vendem bem o peixe do filme. Essa unicidade dos atores, que formam praticamente um único personagem, pode ser conferida no momento musical de “Merda!”, quando o elenco se reúne numa sequência colorida, muito bem coreografada, que evoca claramente as rotinas do grande Bob Fosse. É um toque delicioso do diretor, que brinca de novo com os contrastes temáticos de sua obra. Mas tudo é perfeito? Não. O tamanho do média incomoda. Funcionaria bem melhor se tivesse no máximo trinta minutos. Há uma reverência muito grande às considerações abstratas dos entrevistados, que parecem se dirigir a uma turma de teatro, não ao grande público. Isso gera um distanciamento dos espectadores em relação a estória que Paulo Henrique Borges se propôs a contar. As intervenções professorais deveriam ser apenas um tempero, melhor editadas, não tomar tempo relevante para construção de personagens – como do referido diretor. Há também erros técnicos pontuais mas que prejudicam a imersão na parte ficcional do média: a sombra do microfone em determinada cena é dolorosamente óbvia e, num filme que se apoia na fotografia preto-e-branco, não há espaço para vultos acidentais. O som poderia ser melhor, mas esta é uma questão técnica que ainda permeia a maior parte das produções potiguares, certamente atribuível ao baixo orçamento e dificuldade de utilização da aparelhagem adequada. A despeito dessas questões, “Merda!” é um passo muito positivo na carreira de Paulo Henrique Borges e na própria cena cinematográfica local. Apesar de manter a opinião de que o filme fluiria melhor como curta, há de se aplaudir o diretor em tentar trilhar o caminho mais difícil na realização de um média metragem, formato ainda raro em terras potiguares. Nesse sentido, “Merda!” ao realizador e à sua equipe.
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AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
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