Nelson Marques Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) e Associação Cultural Cineclube Natal e-mail: [email protected] Eu talvez tenha sido um dos primeiros a assistir ao doc. sobre Nevenka Fernández no início de março de 2021. Confesso que fiquei chocado e angustiado. Demorei, no entanto, para fazer esta crítica à “docussérie”, que está na grade da Netflix, para assentar de forma adequada os fatos ali narrados e que têm apenas 20 anos de “história”. Estes fatos são apresentados agora em 2021, cerca de 14 anos após os movimentos importantes de conscientização pessoal e social contra assédio sexual e profissional representados pelo “Me Too” (#MeToo) e congêneres como “Não É Não” (#NãoÉNão). A razão principal da demora deveu-se ao fato de que não conseguia ter uma inspiração suficientemente chocante e importante de como começar. Finalmente tive-a..., inspirado e estimulado por um texto escrito pelo jornalista e escritor Juan José Millás e, portanto, ela aqui está. O texto de Millás foi publicado em El País Semanal em 26 de fevereiro do corrente. Tem por título “Nevenka Fernández y el precio de la verdad”, do qual me apropriei de um pedaço do título, até como homenagem a ele e Nevenka pela coragem de ambos. Millás escreve: “Hace apenas 20 años, si eras cajera de Hipercor y el pan de tus hijos dependia de ello, te tenias que dejar tocar el culo por tus jefes. No lo dijo yo, lo decía el fiscal jefe de León, es decir, un representante de la realidad consensuada del momento, uno de los miembros más respetados de nuestra comunidad, um señor con estudos, con poder, con corbata, con prosopopeya o empaque, con ética y autoridad: em resumen, con todo lo que hay que tener para soltar esa afirmación públicamente, en la mitad de um juicio con taquígrafos, con periodistas, y con curiosos desocupados. Según este representante del ministério público, era normal que los hombres con poder tocaran el culo a sus subordinadas. Formava parte del contrato social”. Nevenka tinha 26 anos quando denunciou o homem que a assediava sexualmente: seu chefe e... prefeito da pequena cidade de Ponferrada, município da Espanha na região de El Bierzo, da Comunidade Autonôma de Castela e Leão, no noroeste do país, a meio caminho de Santiago de Compostela. A comunidade tinha, à época, cerca de 65.000 habitantes. Nevenka Fernández, nascida em outubro de 1974, hoje com 46 anos, era uma economista e foi “conselheira” (vereadora) da Hacienda de Ponferrada pelo PP – Partido Popular, conservador, o mesmo partido de Ismáel Álvarez, eleito “alcaide” (prefeito) da cidade. Exerceu o mandato de 1999 a 2000 (apesar de seu mandato ir até 2001). Em setembro de 2000, Nevenka pediu afastamento da Câmara por depressão aguda e se mudou para Madrid. Em 26 de março de 2001 denunciou Ismáel Álvarez, prefeito da cidade, por assédio sexual e profissional realizados durante parte do ano de 2000. Álvarez era membro de seu próprio partido, o PP – Partido Popular. Tudo isso começou após ela finalizar a relação que eles haviam mantido durante alguns meses, iniciada no final de 1999. A partir de sua denúncia pública começou o seu calvário de meses... Essa história, que NÂO é ficção, está no catálogo de séries documentais da Netflix. Esse documentário, “Nevenka: Quebrando o Silêncio”, dirigido por Maribel Sánchez-Maroto, se torna importante por que relata esse caso que se tornou história na Europa e que deveria ser conhecido por todos aqueles interessados e preocupados com a violência contra a mulher e a “cultura” do assédio e do estupro. Foi a primeira condenação na Espanha por assédio sexual de alguém que detinha um cargo político! Como escrevi antes, esse caso foi especialmente lembrado em 2017 quando surgiu o movimento “Me Too”. A produção espanhola tem apenas três episódios e mostra como Nevenka Fernández acabou sendo conhecida mundialmente por ser a primeira mulher a vencer uma acusação de assédio sexual na Espanha. Os casos de assédio sexual, ou até de simples abusos, sempre foram difíceis de serem contados pela vítima. Mesmo hoje em dia, onde já há uma predisposição de se dar mais crédito à vítima, é ainda penoso e custoso para todos os envolvidos, imagine-se isso há mais de vinte anos atrás e numa pequena comunidade conservadora da Espanha. Isso fica claramente mostrado na “docussérie”. Depois de muito tumulto, muitas idas e vindas, muito sofrimento e protestos contra sua decisão, e muitas e muitas horas nos tribunais, e humilhações várias, ela venceu o processo e ficou reconhecida por essa conquista até hoje. Nevenka ratificou a sua denúncia de assédio sexual em abril de 2001 ante o Tribunal Superior de Justiça de Madrid declarando: “Falar me salvou”. Como foi testemunhado à época para o jornalista Juan José Millás, e objeto de suas reportagens e posteriormente do livro “Hay algo que no es como me dicen: El caso de Nevenka Fernández contra la realidad”. E visto também nas suas entrevistas na realização do próprio documentário. Millás acabou se tornando, durante o processo, um amigo próximo de Nevenka. A sentença, conhecida em 30 de maio de 2002, impôs a seu ex-namorado, o ex-prefeito de Ponferrada, Ismáel Álvarez a pena mínima. Álvarez já havia se afastado espontaneamente do cargo de prefeito no mesmo dia em que Nevenka fez a denúncia pública. Ismáel Álvarez foi condenado pelo Tribunal Superior de Castilla y León a nove meses de prisão, revogada posteriormente, multa de 6.800 euros e uma indenização pecuniária a Nevenka no valor de 12.000 euros por assédio sexual. Pela primeira vez um político espanhol era condenado por assédio sexual. Por isso mesmo o caso fez história.
No entanto, essa foi tipicamente uma vitória de Pirro. Nevenka ganhou a batalha judicial, porem perdeu a batalha social! Mesmo que tenha conseguido vencer no Tribunal, as indignações da pequena comunidade a favor do prefeito foram tão grandes que fizeram com que Nevenka tivesse que deixar o país para sempre. Depois do julgamento Nevenka não conseguiu encontrar trabalho e acolhimento e por isso decidiu se mudar para Londres e posteriormente para a Irlanda, onde vive até hoje. O documentário em si é muito simples, desde o princípio. Nevenka Fernández, conta em frente a uma câmera, com lágrimas nos olhos, como foi a sua relação com o ex-prefeito de Ponferrada, Ismáel Álvarez, relatando todas as situações que a fizeram ir à justiça buscar por punições. Ela fala bastante sobre o machismo e na liberdade masculina de acreditar que pode fazer o que quiser com corpos femininos. Nevenka sempre chamou a atenção por ser uma pessoa bonita e que atendia aos padrões, desde que era criança, e que sempre quis provar que era mais que isso. Por mais que tivesse um currículo universitário de dar inveja, ficou claro que a sua contratação levou mais em conta a aparência, pois apareceria junto a outros homens que a tratariam como um agrado aos olhos. Além dos depoimentos da vítima, que apresenta muita segurança ao falar dos fatos, ainda que tenham sido traumatizantes, vemos declarações da imprensa e de pessoas envolvidas no caso. Todos relatam os mesmos problemas do machismo que tomou conta do caso, analisando o comportamento do ex-político em relação às outras pessoas que funcionava com um abuso de poder velado. Ismáel Álvarez conquistou diversos fãs enquanto esteve no poder, fazendo grande parte da população acusar Nevenka de estar buscando por autopromoção e dinheiro. Inclusive, o fato de a vítima ter tido um breve relacionamento com o político fez com que a sua reputação piorasse ainda mais. Foi a partir do "não" que os abusos começaram, com o ex-prefeito torturando a funcionária de forma psicológica e também grotesca, como diz um dos relatos em que ele a fez dividir o quarto com ele em uma viagem e se masturbou ao lado dela. A série documental consegue encaixar todos os acontecimentos em uma linha do tempo concisa e sem se prender aos fatos apenas para ter mais material. A produção vai direto aos pontos, trazendo informações sobre a acusadora, do acusado e das pessoas relacionadas de forma breve e resumida, mas sem deixar informações faltantes. Além disso, o documentário traz informações importantes para a história da Espanha, que até chega a ser comparada com a pioneira do movimento “Me Too”, em que mulheres de Hollywood começaram a denunciar seus abusadores. Tem um roteiro simples e enxuto de Marisa Lafuente e boas atuações de Jolene Andersen, como Nevenka, e Don Baldaranos, como Juan José Millás, quando há necessidade de passar do depoimento direto, para ficção.
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AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
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