Nelson Marques Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) e Associação Cultural Cineclube Natal e-mail: [email protected] O Milagre (The Wonder), filme de mistério e drama realizado em 2022 e dirigido por Sebastián Lelio, tem uma história aparentemente muito simples já vista em muitos outros filmes: “Em 1862, uma enfermeira inglesa assombrada por seu passado (serviu na Guerra da Criméia, no século 19) vai até um remoto vilarejo irlandês para investigar o jejum supostamente milagroso de uma jovem para acompanhar o “milagre” de uma menina que há meses não se alimenta e vem chamando a atenção em seu vilarejo e arredores. Recebendo visitas de fiéis e uma investigação da Igreja”. É simples assim, mas ao longo da história muito nos faz pensar e o que se seguirá é uma narrativa que irá desmistificar o milagre do título. Uma quebra da fantasia realizada pela própria linguagem cinematográfica. Ao misturar religião e fé, que são variações de um mesmo tema, e através do misticismo, nos aproximamos das relações entre Deus e o homem. Se a natureza divina se faz presente em rigorosamente todos os seres, animados ou inanimados, racionais ou não, como pensou antes Spinoza, o Criador seria também capaz de apresentar-se sob uma forma curiosamente ambígua, juntando num único ser a constituição sem falhas que o difere de qualquer outra entidade e a matéria, perecível e dúbia, que conhecemos tão bem. O chileno Sebastián Lelio, nascido em Mendoza, Argentina, produtor e roteirista também, tem tarimba em descrever situações nos mais matizados graus de incômodo. Até os seus filmes mais recentes, realizou Fragmentos Urbanos, em 2002, Ciudad das Maravilhas, em 2002 também, A Sagrada Família, em 2006, Glória, em 2013 e 2018 e o ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 2018, Una Mujer Fantastica, representando o seu país, Chile. O filme que comentamos tem um roteiro elaborado pela escritora do livro original e pela roteirista Alice Birch. Destacam-se no filme ainda, Tom Burke e Niamh Algar e é uma coprodução Irlanda, Reino Unido e Estados Unidos. Em O Milagre, Lelio resolve encampar novos e indigestos pontos de vista desta feita voltados para uma das controvérsias mais frutíferas da civilização. O Milagre é a convincente história de uma farsa. Com o filme, baseado no romance homônimo de Emma Donoghue publicado em 2016, Lelio pretende atingir o coração do espectador no que ele pode ter de mais genuíno e, a um só tempo, de mais frágil: a crença de que a vida humana deve ser permeada pelo componente metafísico da religião e da espiritualidade, nessa ordem. O diretor mira Deus e que maneira certos homens O vêm, explicitando a confusão deliberada em torno da necessidade de se guardar a fé e de se estar sempre atento aos propósitos, nada ingênuos, que visam manter aceso o interesse nas coisas divinas. Através da atuação exemplar de atores e atrizes, como Florence Pugh e Kila Lord Cassidy a história se faz mais verdadeira ainda. Lib Wright, a enfermeira inglesa deslocada para a Irlanda em 1862 a fim de cumprir uma perturbadora missão, deixa-nos cicatrizes quase tão profundas quanto às daquele cenário, palco de miséria e fome desde há, pelo menos, duas décadas. Lelio trabalha a inclusão de Anna O’Donnell, a personagem de Kíla Lord Cassidy, de modo a legitimar o sacrifício de Lib em meter-se numa nova vida tão transtornada por um ideal, ainda que regiamente paga. À medida que as duas se aproximam, claro, tudo o que parecia etéreo torna-se palpável, enfim. Como se queria demonstrar desde o princípio. Usando locações que enaltecem o vazio que a Irlanda estaria se tornando com uma fome que reduziu drasticamente sua população e provocou uma emigração em massa, o diretor Sebastián Lelio traduz o fervor religioso em uma fotografia e enquadramentos que remetem a pinturas sombrias da época. Uma época ambientada em O Milagre que não difere tanto da atual, em que conflitos e o desamparo da população levam ao fanatismo que põe em risco a vida dos mais vulneráveis. O Milagre, no final das contas, em momento algum é religioso ou tenta comprovar teses religiosas. Pelo contrário: o filme faz de tudo, desde sua primeira cena, para mostrar que essa não é uma história mergulhada nos milagres da religião. Lelio, para isso, abraça uma protagonista que nunca acredita na possibilidade de um milagre envolvendo a jovem Anna e sabe, sem dúvidas, que alguém a está alimentando sem que os outros saibam. Ela está ali para tentar desmobilizar essa armação e, se possível, salvar a criança de morrer de fome. Lelio conta uma história sobre uma garota que, naqueles tempos, se transformou em uma história em movimento. Uma história que as pessoas queriam acreditar.
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AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
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