Nelson Marques Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) e Associação Cultural Cineclube Natal e-mail: [email protected] Retratos fantasmas, o novo filme do diretor Kleber Mendonça Filho, com direção e roteiro dele mesmo é um filme de e sobre cinema. O documentário sobre os antigos cinemas do centro de Recife, não é só isso. É uma história contada a partir das salas de cinema que movimentavam a população e ditavam os seus comportamentos. Ele é tão pessoal, que mais parece uma crônica, uma crônica cinematográfica. Narrado em voz de primeira pessoa, está dividido em três partes, mas mesmo essa divisão, indicada por legendas, não pesa muito, no sentido de que não torna o filme esquemático. É um filme falado, um filme de causos, de contação de histórias, de apontamentos, uma conversa de Kleber com o público. A primeira parte é sobre o apartamento da família do cineasta; a segunda sobre as ruínas dos cinemas antigos; a terceira sobre como esses cinemas viraram templos evangélicos, ou, retrocedendo mais no tempo, como Kleber Mendonça fez, como igrejas viraram cinemas, caso curioso do Cine São Luiz, que fora no passado, uma igreja anglicana. O roteiro do filme, uma crônica personalíssima de Kleber, autobiográfica de ponta a ponta, começa efetivamente no apartamento de sua família, onde ele rodou muitos dos seus filmes, inclusive os de maior sucesso, como O som ao redor. De forma que a história do apê passa a soar como o cenário da trajetória de um cineasta – um cineasta que foi e é, antes de tudo, cinéfilo que agora nos conta, de forma igualmente pessoal, a sua tristeza de ver os cinemas da sua cidade mortos, expostos agora em “retratos” que hoje são “fantasmas”.
O olhar que Kleber trás aqui parece ser herdado de sua mãe, uma historiadora e pesquisadora de história oral, que é o que o filme busca ser, com uma narração em off de apontamentos factuais e subjetivos de forma descritiva e pontual num ritmo espaçado e calmo, despidos de variações emocionais nos tons de fala de Kleber, que não surpreende, pois fala de forma parecida ao vivo. Esse tipo de narração não dá uma seriedade ao filme, muito pelo contrário, os apontamentos nunca chegam a ser formais, são como uma conversa despojada, com humor e ironias, como se ele apontasse com o dedo para um álbum pessoal de imagens de arquivo e próprias para nos contar um causo, chamar atenção para algo que ele notou e que pelo conjunto desse roteiro ganha outras linhas de significação e reflexão, Kleber escolhe ser conciso em suas falas. A história dos fantasmas, além da alegoria que percorre o filme todo, já aparece nesta primeira parte, quando o cineasta relata sobre uma certa fotografia batida no apartamento, que teria registrado a figura de uma alma do outro mundo. E é esse mesmo clima de fantasmagoria que, aparecerá no final da terceira parte, com um desenlace criativo, que irá justificar o “desaparecimento” do motorista de aplicativo, bem na tradição do realismo mágico das histórias latino-americanas. A segunda parte do documentário é sobre as ruínas dos cinemas antigos, os “fantasmas” dos cinemas, apresentado com muita emoção, num tom subjetivo, emotivo, lírico. É só ver a relação do cineasta com o operador de câmera do antigo Cine Art-Palácio, Seu Alexandre, tudo filmado, tempos atrás, pelo próprio cineasta em um precário Super 8 – modelo de câmera hoje já morto, como aliás, também Seu Alexandre. Um dos momentos mais tocantes é quando Seu Alexandre, na derradeira sessão do cinema onde trabalhava, confessa que aquela exibição vai fechar a existência da sala, não com chave de ouro, mas com “chave de lágrimas”, liberando as suas próprias lágrimas. Como não se comover? Pouco importa se você nunca frequentou os cinemas de Recife, já que é lá que tudo se passa. Em seu tom de crônica, o filme de Kleber Mendonça nos remete a todas as histórias de cinemas de rua do país. E possivelmente, do mundo. Nas palavras de Carlos Drumond de Andrade, em outra crônica, de 1986, Os cinemas estão acabando?, “aquele que não sentiu a perda de um cinema que frequentou durante anos, tem coração de pedra ou a memória nublada”. Há um misto de sentimentos ao fim da projeção. Sente-se uma mistura de nostalgia e melancolia, mas no fim há também uma certa esperança, talvez pela forma agridoce com que o filme termina ou talvez por sentir que apesar da situação do cinema brasileiro, refém da dinâmica de shoppings e ingressos antipopulares, quase abusivos, mas que em alguns centros urbanos se veem movimentos de resgate de cinemas de rua históricos por uma lógica cultural que mescla a prática comercial com a prática de cinemateca, como no Cinema São Luiz em Recife, ou o seu homônimo em Fortaleza. Eu, não me vi pessoalmente, nas calçadas e dentro dos cinemas de Recife, como Kleber tão bem descreve de forma tão nostálgica e cativante, mas vi o mesmo processo acelerado de destruição dos cinemas de São Paulo, onde vivi a maior parte da minha vida e mais recentemente, nos ultimos vinte anos, dos cinemas de Natal e de outras cidades do Rio Grande do Norte e que resultaram na escrita de um livro em vias de publicação sobre os cinemas de rua do Rio Grande do Norte.
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AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
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