Nelson Marques Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) e Associação Cultural Cineclube Natal e-mail: [email protected] Um filme de mais de três horas de duração (exatamente 187 minutos), produzido em 2022, mostra de forma extraordinária em que pé está o polo de cinema de Bollywood, na Índia, o já conhecido e falado polo produtor de cinema, fora dos esquemas de produção nos EUA, na Europa e na Ásia. É importante também lembrar que Bollywood é apenas a parcela em hindi da sua produção; “RRR”, por exemplo, é falado em télugo, apesar da versão disponível na Netflix ser dublada em hindi. A proposta de lá é fazer filmes que possam ter apelo para diferentes faixas demográficas da sua “pequena” população de mais de 1 bilhão de pessoas, atendendo ainda a uma amálgama heterogênea de tons e gêneros e de público. A cola que une todos esses impulsos díspares é a sensibilidade particular do modo de ser indiano – que, em cinema, se aproxima mais de uma lógica da “mostração” que da narração. Assim, em “RRR”, Rajamouli, seu diretor e roteirista, frequentemente pausa o andamento da trama para prolongar-se sobre alguma nova vista espetacular – e tome slow motion e dollys circulares. Seu uso de CGI é, nesse sentido, perfeito, complementando uma fluidez espacial que está mais preocupada em deslumbrar do que se ater às nossas monótonas leis da Física. A história do filme se passa na década de 1920, em uma Índia ainda colônia do Império Britânico, “RRR” conta a história da improvável amizade entre um oficial indiano servindo aos britânicos, Raju (Ram Charan), e o camponês revolucionário Bheem (N. T. Rama Rao Jr.). Raju e Bheem são nomes de figuras reais na história revolucionária indiana. Há um oficial inglês extremamente cruel que sequestra uma criança de uma tribo porque ela canta bem. Bheem, um dos membros da tribo, não vai deixar as coisas assim e fará de tudo para recuperá-la. O outro personagem principal é Raju, um indiano membro do exército inglês que tem um plano ambicioso e desesperado para expulsar os invasores. “RRR”, contudo, é um filme e não uma aula de história; boa parte do que o filme mostra em se tratando de seus heróis – incluindo sua força sobre-humana e habilidade musical – é fictício, a começar pelo fato de que, na vida real, Raju e Bheem nunca sequer se encontraram (Alluri Sita Ramaraju e Komaram Bheem, seus nomes reais, lutaram pela independência da Índia). No elenco aparecem ainda Ajay Devgn, Alia Bath, Olivia Morris e Ray Stevenson. A música é de M. M. Keeravani, a cinematografia é de K.K. Senthil Kumar e a direção de arte de Sabu Cyril. Esse foi um dos filmes mais comentados ao longo de 2022 e não sem motivos. Se você gosta de ação, mas está saturado com a forma como Hollywood trata esse gênero saiba que “RRR” é uma ótima opção. Mas é importante que você esteja preparado para os exageros comuns ao cinema indiano. A duração é longa, o ritmo é muitas vezes frenético, as cenas de ação desprezam as leis da física, o vilão é unidimensional, a história tem certa previsibilidade e há alguns números de dança e cantoria. E tudo isso funciona de maneira magistral, fazendo de “RRR” uma absoluta loucura cinematográfica extremamente divertida. O título, é verdade, não nos diz muito: Rise, Roar, Revolt em inglês, e “Revolta, Rebelião, Revolução” em português, mas, originalmente – e esse é o pulo do gato –, as iniciais representam os nomes de seus astros: Ram Charan como o temível militar Raju, Rama Nao como o afável Bheem e, finalmente, o próprio diretor S. S. Rajamouli. O diretor, que já trazia no seu histórico a maior bilheteria da história da Índia com seu Baahubali 2: A Conclusão, de 2017, desbancou a si mesmo com “RRR”, que tomou o título para si. Semelhante ao grandioso Bahubali: The Beginning de 2015, “RRR” é um filme que jamais se preocupa em explicar suas origens fantásticas. Ou melhor, nem faz questão de tornar isso uma questão. Quando vemos um pacífico integrante de um vilarejo colonial enfrentando um tigre de igual pra igual, não há necessidade de lógica - as alternâncias entre a câmera lenta e acelerada, pontuadas por uma trilha sonora bombástica, te convidam a apenas apreciar o momento entre homem de verdade e criatura de CGI. Impressiona também a relação entre o realismo das sequências de ação e a fantasia adotada na abordagem. Por mais absurdo que sejam os feitos físicos dos protagonistas, eles estão ali, tornando a suspensão da descrença algo praticamente automático. Em determinada cena, dois homens que nunca se viram antes se comunicam por olhares e realizam um resgate “impossível”, o que deve provocar o famoso “só em filme” do pessoal apaixonado por verossimilhança, mas alérgico a Cinema realista de verdade. E claro que a noção Ocidental de atuação se corrompeu ao longo dos anos, mas o que faz a dupla principal aqui é digno de todas as aclamações possíveis - além de atuarem “bem”, realizam as sequências de ação a modo de envergonhar as massinhas de modelar que substituem os astros norte-americanos, e ainda dançam mais do que estes. Interessante também como Rajamouli encontra espaço para explorar temas mais substanciais: a dicotomia do cavalo e da moto, a arma como maneira de libertação do povo e não de violência descabida, a tecnologia em prol do desenvolvimento humano e de suas relações.
E por mais empolgantes e/ou gratificantes que estes momentos sejam, ao abusarem da relação ingênua, quase infantil com o Cinema de ação e fantasia, acabam abordando com uma superficialidade frágil a ideologia, no mínimo, discutível que o filme adota. Não que seja difícil enxergar os ingleses como criaturas malignas, algo até comovente (difícil imaginar outra maneira que crianças indianas os enxergariam na época da colonização) justamente por contrapor os objetivos materiais do império com a simples, mas poderosa vontade de viver em liberdade que todo Indiano ainda deve partilhar. Mas, por mais gratificante que seja ver o início da destruição do império colonizador, a verdade é que os crimes foram ainda mais brutais que aqueles ali mostrados, e não foram resolvidos de maneira heroica e/ou “satisfatória”. Não foi uma flecha, mas uma greve de fome, a maior das ironias para um povo que tanto sofreu, e que só queria ter sua própria terra de volta. De novo, Rajamouli parece ciente disso - e não economiza na brutalidade dos vilões -, e visto o sucesso do filme na Índia, e no mundo, parece ter caído bem. O que não deveria surpreender. Pois mesmo com suas políticas inevitavelmente ambíguas, “RRR” é um filme tão sincero e apaixonado por seus heróis que o resultado final é um blockbuster adorável sobre como resolver as mazelas históricas com explosões e dança.
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AutoresGianfranco Marchi Histórico
Fevereiro 2022
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